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Pólo industrial abandonado é reflexo do retrocesso da Venezuela

Enquanto a economia desmoronava, a moderna cidade de aço e alumínio foi engolida pelo passado, transformada em um posto das minas de ouro

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Puerto Ordaz já foi o polo industrial da Venezuela, um sonho modernista de amplos bulevares e muitas fábricas, e o portal para um cinturão de ricos campos de petróleo que financiaram a generosidade do governo durante décadas. Enquanto a economia desmoronava, porém, a moderna cidade de aço e alumínio foi engolida pelo passado, transformada em pouco mais que um posto avançado das minas de ouro a algumas horas de carro, nas bordas da Amazônia.

Lá, em poços encharcados e cheios de malária, controlados por bandos de criminosos, homens trabalham como fariam séculos atrás. As pelotas de metal amarelo que eles extraem com trabalho extenuante hoje movimentam a cidade. O ouro tornou-se tão comum que o escambo no estilo medieval começa a substituir a moeda em toda a cidade.

O ouro também paga cada vez mais as contas do governo nacional na longínqua Caracas. Com as receitas do petróleo a minguar e as sanções dos Estados Unidos nos calcanhares, o presidente Nicolás Maduro tem contado com a riqueza das minas para manter o governo flutuando durante um impasse de meses com o líder da oposição, Juan Guaidó.

Assim, o governo permitiu que a indústria ilegal e os grupos armados que a controlam florescessem, provocando uma epidemia de violência, doença e devastação ambiental, e atraindo grande parte da população que resta em Puerto Ordaz. “Mais da metade de nossos clientes quer pagar em ouro”, afirma uma agente imobiliária, que descreveu um recente percurso de carro arriscado pela cidade cada vez mais sem lei para fechar um negócio, seguindo os compradores que carregavam ouro no valor de um apartamento. “O cliente disse ‘Venha no nosso carro’, mas eu disse: ‘Não, nós vamos atrás de vocês’. Com a insegurança, não se sabe quem reconhece que você carrega ouro”, acrescentou a agente, que ainda tem dificuldades com as novas normas de fazer negócios e pediu para não ser identificada.

Até as universidades foram envolvidas na corrida do ouro. “Em novembro, uma das garotas que estudam aqui me disse: ‘Um diploma não é caro, porque custa só 2,5 gramas de ouro (por semestre)’”, contou Arturo Peraza, reitor da influente Universidade Católica Andrés Bello. “Foi a primeira vez que eu soube o valor de uma educação universitária em gramas de ouro. Eu não podia imaginar.”

Os shopping centers foram dominados por negociantes do metal, que se sentam à vontade nas fileiras de lojas que antes vendiam produtos eletrônicos ou roupas, esperando que os garimpeiros cheguem com migalhas amarelas para trocar por dinheiro. Homens com olhos cansados e armas mal escondidas postam-se perto das saídas principais. Eles são a face pública mais discreta de uma epidemia de violência alimentada nas minas, mas que se esparrama além delas.

A febre do ouro alimentou uma proliferação de bandos armados, atraiu um grupo guerrilheiro colombiano, o ELN, promoveu a corrupção nas forças de segurança nacionais e a insegurança em Puerto Ordaz. A doença também se propagou nas minas e seguiu o ouro e os mineiros à cidade, revivendo a malária em uma região onde ela estava extinta.

Os problemas no leste remoto do país geralmente são menos noticiados do que as crises na fronteira oeste com a Colômbia, a rota principal para milhões de migrantes que tentam escapar da miséria na Venezuela. Mas os moradores dizem que a ilegalidade que fermenta nos distantes acampamentos de garimpeiros é um risco subestimado. “Aqui no estado de Bolívar, temos condições de financiar o caos, porque temos ouro”, analisa Peraza. “Em Caracas, eles não sabem o que acontece aqui. Eles estão tão focados na questão do petróleo, porque foi o centro econômico do país durante cem anos. Mas o petróleo secou e ninguém percebeu que a realidade mudou.”

O ouro é muito mais fácil de transportar e menos complexo de se extrair, se você tiver uma mão de obra desesperada para fazer o trabalho sujo e perigoso manualmente. Os trabalhadores que escavam em busca de ouro – são todos homens, as mulheres só atuam como cozinheiras ou nos bordéis nas minas – incluem pessoas cujos empregos foram abolidos pela crise ou os salários se desgastaram com a hiperinflação em níveis que só davam para comprar alguns pães de forma ou um saco de arroz. Muitos nunca retornam dos poços brutais. As mortes não são registradas e seus corpos não são enterrados oficialmente. Entre os desaparecidos estão o fotógrafo Wilmer González, que fazia uma crônica das minas e também trabalhava nelas.

Com a queda das vendas de petróleo, Caracas tornou-se mais dependente do metal extraído na região

Na região, muitos que não estão diretamente no garimpo de ouro dependem da economia do metal para sobreviver. Todos os dias um fluxo constante de automóveis segue para as minas carregados de latões de diesel, muitos dirigidos por trabalhadores de colarinho-branco. “Não tenho opção se quisermos comer. Eu não recebo há meses”, conta Lucia, professora de escola primária que duas vezes por semana faz a viagem de 18 horas, ida e volta, com seu marido e dois filhos pequenos, arriscando-se a pegar malária e a sofrer violência por um pequeno lucro que mantém o teto sobre suas cabeças e as refeições mais básicas na mesa. Ela pediu para não usarmos seu nome verdadeiro por medo de perder o trabalho.

Antes uma apoiadora de Hugo Chávez, ela perdeu a fé no governo, conforme a economia entrou em colapso ao redor de sua família próspera, destruindo o emprego de seu marido na administração de uma fábrica e transformando seu cargo de educadora em uma atividade voluntária. “Isso nos levou a fazer coisas que nunca poderíamos imaginar: vender queijo, trocar moedas. Então, quando não tínhamos outro meio de ganhar dinheiro, decidimos vender diesel às minas.”

A atração do ouro enterrado sob as florestas do leste da Venezuela tem séculos. Walter Raleigh navegou pelas águas do Rio Orinoco para além do local atual de Puerto Ordaz, em busca do mítico El Dorado, cidade de ouro que nunca foi encontrada, mas deu o nome a uma cidade sem atrativos na estrada para o Brasil.

Nas últimas décadas, enquanto a Venezuela nadava nos lucros fáceis do petróleo, as minas de ouro pareciam mais uma curiosidade histórica que uma preocupação. A cidade de Callao, polo regional e ponto turístico popular, era conhecida principalmente pelos festejos de carnaval. Os visitantes passeavam por ruas coloniais tranquilas, onde lojas vendiam joias de ouro feitas à mão e uma firma tinha uma concessão para dirigir uma grande mina moderna. Hoje ninguém a visitaria por prazer.

Tornou-se um ponto de parada rebelde e perigoso para as minas revigoradas, suas ruas cheias de comerciantes de ouro e mineiros. As multidões às vezes se afastam para um carro SUV de luxo, com janelas escuras e escolta armada, o mais perto que a área chega de ver o poder por trás do dinheiro.

“No momento temos uma pax mafiosa”, define Arturo Peraza, reitor da Universidade Católica Andrés Bello

Os trabalhadores chegam com o pensamento de que ficarão por pouco tempo e então vão embora com uma pequena fortuna, mas a maioria ganha pouco e gasta tudo no lugar, em comida e bebida ou em bordéis. Na região há um ditado: “O que a mina dá, a mina leva”.

Aqueles com maior lucro são geralmente invisíveis. Talvez o mais remoto, ligado por uma cadeia emaranhada de intermediários, seja o próprio governo, depois que descobriu nas minas uma forma de transformar notas bancárias que se desvalorizam rapidamente em ouro puro.

O comércio financia o governo Maduro, enquanto os petrodólares secam. A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo, mas a indústria desmoronou sob o peso da corrupção e da má administração. A empresa estatal PDVSA, que já foi vital para Caracas, hoje mal pode pagar suas contas. “Só aceito trabalhos na PDVSA quando me pagam adiantado, senão não recebo”, descreve um executivo de uma firma de serviços de petróleo em Puerto Ordaz.

Mas a necessidade de fundos do governo não diminuiu com a produção de petróleo, por isso todo mês caminhões passam por Puerto Ordaz carregando caixas de dinheiro, rumo às minas.

O dinheiro em papel foi abandonado por pagamentos digitais na maior parte da Venezuela, mas nas minas fora da cobertura da telefonia celular e sem energia elétrica o dinheiro vivo ainda reina.

Ele é trocado por ouro, que então é enviado para o exterior em navios, inclusive para a Turquia, valendo reservas cambiais para o governo, segundo descobriu uma investigação da agência Reuters. Isso torna a área especialmente vulnerável e particularmente tensa.

Guaidó alarmou até seus aliados ao flertar com a ideia de uma intervenção dos Estados Unidos, o que no leste perturbaria fatalmente o delicado equilíbrio de poder entre bandos locais, guerrilheiros e os braços corruptos das forças de segurança do Estado.

“No momento temos uma ‘pax mafiosa’”, define Peraza. “Mas assim que houver um confronto, assim que se romper o pacto, haverá anarquia. É o que aconteceria no caso de uma invasão estrangeira.”

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