Mundo
Poço sem fundo
De convulsão em convulsão social, o país mergulha cada vez mais no caos e abre caminho a velhas propostas autoritárias


Na primeira semana de outubro, ao menos 20 mil motoristas do Peru ligados a empresas, sindicatos, associações, além de informais e autônomos, paralisaram por duas vezes parte das principais ruas do país. Em novas jornadas de protestos, os manifestantes marcharam até a frente do Congresso para denunciar uma vez mais a insegurança reinante. Extorsões, ameaças, assassinatos e até ataques a bomba e dinamite. O cenário de guerra atormenta o cotidiano de milhares de trabalhadores do setor e milhões de cidadãos, especialmente das camadas populares, dependentes do transporte público, sobretudo na região metropolitana de Lima, uma das maiores da América Latina, com mais de 10 milhões de habitantes.
De janeiro a julho, segundo dados oficiais, ao menos 65 motoristas morreram no trabalho, expondo o retrato mais dramático do aumento da criminalidade em todo o país. Os óbitos saltam para 180 quando se somam os casos de taxistas e mototaxistas, aponta o Observatório do Crime e da Violência. Estima-se que 40% dos trabalhadores foram obrigados a se afastar definitivamente, ou por algum período, das funções em razão do perigo constante. ”O crime capturou uma série de áreas geográficas e as dividiu em zonas de influência. Não é algo isolado, acontece em outros segmentos, a exemplo da mineração ilegal. No caso dos transportes, esses grupos buscam o controle a fim de lucrar com o domínio das rotas, valendo-se do fracasso do Estado em combater esse fenômeno”, avalia o coronel Juan Carlos Liendo, ex-chefe do Serviço de Inteligência do Exército peruano e consultor internacional em segurança.
A situação, óbvio, aumenta o estresse dos passageiros e afeta o custo das tarifas. O valor cobrado em algumas linhas dobrou, para compensar o pagamento de propinas, alegam as empresas e trabalhadores. “Sempre que posso, evito pegar ônibus ou similares porque tenho medo. As extorsões são realizadas por máfias que exigem dinheiro para não atacar os condutores e seus veículos e, portanto, nunca há garantias de que algo não vá acontecer. Nos últimos dois anos, essa modalidade de crime cresceu assustadoramente, muitas vezes protegida pela corrupção policial”, afirma a cientista social Alejandra Bernedo.
Da primeira marcha motivada pela morte do motorista Yahir Miler, em agosto de 2024, à mais recente, realizada em 6 de outubro, depois do assassinato de Daniel Alfonso, ambos alvejados por tiros, houve mais dez manifestações, período no qual o quadro se agravou. Entre as propostas em discussão está a criação de uma unidade de elite especializada em combater o crime nos transportes, algo pouco viável para uma força cujo déficit é estimado entre 40 mil e 50 mil integrantes, a se considerarem os padrões sugeridos por organizações internacionais e os números apresentados pelo Ministério do Interior, que reconhece a defasagem.
A confiança nas instituições está no chão. Boluarte, a presidenta, é rejeitada por 96%
O terreno é fértil para o aparecimento de projetos controversos ligados à agenda da extrema-direita, entre eles a flexibilização do porte de amas, inclusive para cobradores e motoristas, ponto que não é consenso entre a categoria, de acordo com lideranças sindicais. O endurecimento de leis migratórias, a retirada do Peru da Comissão Internacional de Direitos Humanos e a instituição da pena de morte também ganham espaço no debate público. O prefeito de Lima, Rafael López Aliaga, empresário reacionário com pretensões presidenciais, sugeriu enviar condenados a El Salvador, que se tornou uma espécie de Disneylândia dos presídios e onde os direitos humanos foram praticamente banidos pelo governo de Nayib Bukele. “Os discursos de vários políticos exploram o medo da população. Sugerem medidas inviáveis que desrespeitam a democracia, apenas para obter visibilidade perante a opinião pública”, critica a jornalista Maria Elena Hidalgo.
Não há dúvida de que o tema dominará a próxima eleição, marcada para abril próximo. “A incógnita é se o sistema político terá capacidade para canalizar o descontentamento por meio da escolha eleitoral ou se, ao contrário, o conflito se acentuará em uma nação que busca redefinir seu contrato social”, observa o advogado Juan Diego Motta.
A falta de confiança nas autoridades e instituições é outro fator de instabilidade. Segundo levantamento do instituto Ipsos, 89% dos cidadãos não confiam no Legislativo e 82% desaprovam o Judiciário. Piores ainda são os índices da presidenta Dina Boluarte, que chegou ao poder após o afastamento e prisão do então titular Pedro Castillo, depois da tentativa de dissolver o Congresso. Mandatária mais rejeitada da região, Boluarte acumula 96% de rejeição, revela pesquisa da Datum divulgada em agosto.
A polícia não escapa da crise de legitimidade, com integrantes acusados em diversos casos de corrupção. Em outra frente, reportagem do Ojo Publico informou que mais de 2 mil policiais são investigados por violência contra mulheres. Com a experiência de 40 anos de atuação policial, incluindo o comando da divisão de combate ao terrorismo, o tenente-general José Baella Malca é taxativo: “Desde o início deste governo, são mais de 5,3 mil homicídios, algo sem precedentes. Atravessamos, sem dúvida, o momento mais delicado de insegurança desde a época do enfrentamento às guerrilhas que desejavam conquistar o poder, diante das organizações de agora, cujo objetivo é mais de ordem econômica”. Nas décadas de 1980 e 90, o Movimento Revolucionário Tupac Amaru e o Sendero Luminoso, entre outros, espalharam o terror na população e promoveram ações como sequestros e atentados em aéreas urbanas e rurais. O resultado foi o aparecimento da nefasta figura de Alberto Fujimori, ex-presidente eleito que instituiu uma ditadura na metade da década de 90 e acabou condenado por corrupção. Não se sabe se agora os peruanos encontrarão alguma solução democrática ou se deixarão se seduzir por apelos autoritários. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Poço sem fundo’
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