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Pesadelo em Washington

O que viria a ser um segundo mandato de Donald Trump na Casa Branca

Bolha. Trump evita participar dos debates com outros postulantes do Partido Republicano. Prefere falar sem contrapontos a seus fanáticos seguidores – Imagem: Ricardo Arduengo/AFP
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É um dia frio e uma multidão está reunida no National Mall, em Washington, para a posse do 47º presidente dos Estados Unidos. Ao meio-dia de 20 de janeiro de 2025, Donald Trump coloca a mão sobre uma Bíblia, faz o juramento de posse e um discurso inaugural com um tema simples: retaliação. Esse é o cenário de pesadelo para milhões de norte-americanos, cada vez mais forçados a levá-lo a sério. As pesquisas de opinião mostram Trump à frente para a nomeação presidencial republicana e a bater por pouco o democrata Joe Biden num confronto hipotético. Os analistas políticos podem fazer muitas ressalvas, mas quase todos concordam que a corrida para a Casa Branca no próximo ano será muito acirrada.

O fato de haver uma hipótese mais do que remota de o ex-presidente, duas vezes acusado de impeachment e quatro vezes indiciado, retornar ao Salão Oval faz soar o alarme. “Seria o fim do nosso país como o conhecemos”, disse recentemente Hillary Clinton, que perdeu para Trump em 2016, no programa de entrevistas The View, na ABC. “E eu não digo isso levianamente.”

A ex-secretária de Estado observou que a história mostra como os líderes podem ser eleitos legitimamente e depois abolir as eleições, a oposição e uma imprensa livre. “Hitler foi devidamente eleito”, acrescentou Clinton. “De repente, alguém com essas tendências ditatoriais e autoritárias diria ‘OK, vamos acabar com isso, vamos jogar essas pessoas na prisão’. E eles geralmente não avisam sobre isso. Trump está nos dizendo o que pretende fazer.”

Famoso por desprezar o apito canino dos políticos, preferindo um megafone, Trump tem sido caracteristicamente transparente sobre suas intenções num segundo mandato. Ele deu o tom em março, quando discursou na Conferência de Ação Política Conservadora, enquadrando as eleições de 2024 como “a batalha final” para os Estados Unidos e dizendo a seus apoiadores: “Eu sou a sua retaliação”.

‘Eu sou a sua retaliação’, discursou o republicano

Trump prometeu perdoar os rebeldes de 6 de janeiro num segundo mandato. O site Axios informou sobre seu plano de desmantelar o “Estado profundo”, expurgando potencialmente milhares de funcionários públicos e nomeando seus asseclas ideológicos. Uma reportagem recente no jornal The New York Times contou que sua equipe quer preencher a Casa Branca e os órgãos governamentais com advogados de direita agressivos que não contestariam a expansão do poder presidencial. E The Washington Post informou que Trump discute como usar o Departamento de Justiça para investigar ou processar supostos inimigos, entre eles seu ex-chefe de gabinete John Kelly, o ex-procurador-geral William Barr e o ex-presidente do Estado-Maior Conjunto, general Mark ­Milley. O jornal acrescentou que ele também considera invocar a Lei de Insurreição em seu primeiro dia no cargo, o que lhe permitiria usar os militares para reprimir protestos e dissidências.

Allan Lichtman, professor de História da Universidade Americana em ­Washington, disse: “Seria um desastre para os Estados Unidos. Ele já deixou bem claro que seu segundo mandato será de vingança. Ele vai usar o poder do governo para perseguir e processar seus inimigos e para consolidar seu próprio poder, ou ao menos o de seus aliados e comparsas. Ele já demonstrou que não tem respeito pela lei ou pelas tradições da democracia norte-americana e, portanto, um segundo mandato de Trump seria muito assustador. O consenso esmagador dos cientistas é de que estamos nos aproximando do ponto sem retorno das mudanças climáticas e que quatro anos de Trump seriam um desastre para o planeta. Ele quer perfurar, escavar e queimar”.

Trump escapou do interrogatório sobre sua agenda política ao evitar os três debates primários republicanos realizados até agora. Mas deu muitas pistas em comícios de campanha e anúncios online de que seu segundo mandato faria o primeiro parecer quase tímido e moderado em comparação. Ele prometeu ampliar seu muro na fronteira, enviar forças especiais para combater os cartéis de droga no México, “tal como derrubamos o Estado Islâmico e o Califado do EI”, e impor a pena de morte aos traficantes de drogas. Outras propostas incluem punir os médicos que prestam cuidados de afirmação de gênero, reforçar as restrições ao voto nas eleições e eviscerar programas de diversidade, equidade e inclusão na educação. O ex-presidente já classificou a crise climática como uma farsa e zomba regularmente de fontes de energia renováveis, como a eólica. Um segundo mandato certamente ativaria mais perfurações de gás e petróleo. Ele prometeu ainda acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia em 24 horas, o que muitos observadores interpretam como efetivamente agitar uma bandeira branca para o presidente Vladimir Putin.

É pouco provável que Trump encontre muita resistência por parte das bases do Partido Republicano, que recentemente elegeu Mike Johnson, negacionista eleitoral e fervoroso opositor do direito ao aborto, a presidente da Câmara dos Deputados. Uma eleição que produza a Presidência de Trump provavelmente também dará aos republicanos o controle da Câmara e do Senado, tal como aconteceu em 2016. Ezra Levin, cofundador e codiretor-executivo do movimento popular progressista Indivisible, disse: “Nesse cenário, você vê as ferramentas do Poder Executivo usadas para represália, para desmantelar nossas instituições democráticas, como ele está atualmente prometendo fazer muito publicamente, mas você também vê integrantes da direita trumpista na Câmara e no Senado controlando a legislatura”. Levin prossegue: “Temos agora um nacionalista cristão branco que é o presidente da Câmara e que, muito provavelmente, seria o presidente da Câmara em 2025, não num cenário de governo dividido entre democratas ou republicanos, mas em um em que ele possa realmente definir as políticas. Aí você vê a proibição ao aborto, proibição nacional de livros, redução do financiamento da educação, um imposto sobre contraceptivos, toda a agenda que eles tentaram promover em 2017, e mais, porque o Partido Republicano nos anos seguintes só se tornou mais radical à medida que os moderados foram expulsos pelos apoiadores de Trump”.

Levin, um ex-funcionário do Congresso, emendou: “É certo focar no que Trump promete fazer, mas lembre-se de que não é apenas Trump, porque ele traz consigo muitos outros maus atores para o Poder Legislativo, e eles vão causar enormes danos com o seu apoio”.

Política nos tribunais. Os trumpistas desdenham das condenações do líder. Os opositores depositam suas esperanças na Justiça – Imagem: Scott Eisen/Getty Images/AFP e Kena Betancur/AFP

A implementação dessa agenda parecia absurda depois da insurreição de 6 de janeiro de 2021, enquanto acusações criminais contra Trump se acumulavam em quatro jurisdições. Ela demonstrou, porém, notável resiliência política e domina o campo das primárias republicanas em mais de 40 pontos porcentuais. Uma série de pesquisas de opinião um ano antes do dia das eleições assustou os democratas. The New York Times e o Siena College descobriram que Trump supera Biden em cinco dos seis estados cruciais para decidir o Colégio Eleitoral. As pesquisas do ­Emerson College também colocaram Trump à frente em cinco dos seis estados decisivos. A CNN situou Trump à frente de Biden por 49% a 45% em nível nacional, enquanto os eleitores expressam insatisfação com a economia e com o aumento dos preços.

Michael Steele, ex-presidente do Comitê Nacional Republicano, alertou: “O fato de Donald Trump estar derrotando Joe Biden nas pesquisas em cinco dos seis estados decisivos é terrivelmente doloroso de acreditar, porque diz que você valoriza o país e a sua Constituição muito menos do que valoriza sua própria autogratificação. Entendo, os tempos não são igualmente bons para todos ao mesmo tempo, as pessoas estão passando por coisas, mas não vou sentar e dizer que o cara que tentou derrubar o governo, que sabotou a pandemia mais importante dos tempos modernos, resultando na morte de mais de 1 milhão de norte-americanos, que brinca com os nossos inimigos na Rússia e na China, será a resposta à inflação elevada que, aliás, é a metade do que era há um ano. Não estou comprando o que alguns tentam vender, pensando que será melhor com Donald Trump”.

Steele acrescentou: “Ele representa um perigo claro e presente. Ele é uma ameaça e eu acredito em sua palavra. Quando um candidato diz à sua base: ‘Eu sou a sua retaliação’, isso não é bom para o resto de nós. As pessoas precisam tirar a cabeça da areia, quando se trata de qual é essa ameaça”.

As instituições dos EUA resistiriam a mais quatro, ou oito, anos de Trump?

O 45º presidente sofreu, no entanto, um revés quando os democratas conseguiram vitórias arrebatadoras nas eleições esporádicas na Virgínia, em New Jersey e outros locais, impulsionadas em parte pela exigência dos eleitores ao direito ao aborto. Os principais opositores de Trump o citaram como prova de que ele é um tóxico eleitoral e responsável por uma longa série de derrotas republicanas nas urnas. Os resultados foram suficientes para acalmar os nervos sobre se Biden, que completa 81 anos no fim deste mês, é o homem certo para uma campanha eleitoral cansativa. Enquanto isso, Trump passou a segunda-feira num tribunal de Nova York, por causa de um processo de fraude que ameaça desmembrar seu império empresarial, uma visão prévia dos julgamentos e tribulações legais que ainda poderão minar sua candidatura no próximo ano.

Se o homem visto como um autocrata espera superar esses obstáculos e retornar ao poder em janeiro de 2025, os obituários da democracia norte-americana certamente serão escritos. Mas nem todos acreditam que o Trump 2.0 seria tão apocalíptico. Elaine Kamarck, pesquisadora sênior do grupo de pensadores ­Brookings Institution que trabalhou na administração de Bill Clinton, disse: “Há um pouco de exagero, um pouco de histeria em relação a isso. As barreiras de proteção da democracia ainda estão em muito boa forma”. A Suprema Corte e os tribunais inferiores rejeitaram esmagadoramente a tentativa de Trump de anular as eleições de 2020, observou Kamarck. “Isso não mudou. Na verdade, o Judiciário agora tem mais gente que não apoia Trump, porque Biden teve três anos para nomear juízes e ele nomeou muitos juízes.”

Um possível novo presidente Trump também seria controlado pelo Congresso, onde seria improvável que os republicanos tivessem a maioria de 60 votos no Senado para aprovar a legislação. Um verdadeiro autocrata também desfruta do controle dos militares. “Vejam todos os assessores graduados que se manifestaram contra Trump como presidente. Não há indício de que eles seguiriam ordens ilegais dele, não é assim que funciona.” Kamarck reconheceu: “Acho que seria ruim para os Estados Unidos, e ele certamente tentaria ser um ditador, mas é aqui que confiamos nos pais fundadores. Eles antecederam Trump, mas com uma peruca branca com cachos, e construíram um sistema para evitá-lo. Acho que esse sistema funcionará”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

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