Mundo
Pelo mar e pelo ar
Uma saída aérea via Nicarágua eleva a quantidade de cubanos dispostos a deixar a ilha por falta de perspectivas


Certa manhã, na última primavera, Ernesto Hernández, 22 anos, partiu dos arredores de Havana em um barco precário na esperança de cruzar o estreito da Flórida. O plano era deixar para trás Cuba, uma ilha em ruínas na qual ele não via futuro, e navegar para o sonho americano. Ninguém teve notícias dele, ou dos outros seis passageiros a bordo, desde então. “Todos sabemos que ele se afogou”, disse Camilo Soria, 22 anos, amigo de infância. “Eu ouvia adultos a falar sobre coisas assim quando era criança, mas você realmente não sabe o que isso significa até perder alguém.”
O número de cubanos que deixam a ilha atingirá um recorde histórico neste ano, preveem analistas. A Guarda Costeira dos Estados Unidos interceptou quase 2 mil cubanos desde outubro. Mas muitos outros voam para o continente latino-americano antes de viajar até a fronteira do México com os Estados Unidos: 114 mil cruzaram para o lado norte-americano desde outubro, de acordo com a Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA, 1% de toda a população de Cuba.
Após uma repressão aos manifestantes que inundaram as ruas da ilha em números sem precedentes no verão passado, alguns cubanos têm emigrado por motivos políticos. Mas, com a economia da ilha atolada em uma profunda crise sem-fim à vista, a grande maioria parte em busca de uma vida melhor. Soria, que estuda Ciências do Esporte na Universidade de Havana, elenca cerca de 40 conhecidos, entre amigos, colegas de classe e vizinhos, que partiram nos últimos anos. Ele também quer ir? “Sim, claro”, respondeu em uma recente entrevista por telefone, antes de revelar que estava na fila diante da embaixada mexicana em Havana, na tentativa de colocar seus papéis em ordem.
A política de “pressão máxima” de Donald Trump em relação a Cuba, de modo geral mantida pelo governo Joe Biden, teve o efeito de reduzir os padrões de vida na ilha. A pandemia foi a gota d’água: há dois anos, ficar horas na fila por bens básicos como frango tornou-se um novo normal sombrio. Por enquanto, ao menos, as estrelas se alinharam para quem quer sair. “Se você conseguir chegar à fronteira dos EUA, você entra”, disse Andrew Selee, presidente do Instituto de Políticas Migratórias, grupo de estudiosos de Washington.
À medida que as relações EUA-Cuba azedaram, a cooperação em matéria de migração foi interrompida. O governo Trump fechou os serviços consulares na embaixada dos EUA em Havana em 2017, depois que diplomatas relataram misteriosos incidentes de saúde, e desde então a migração legal para os EUA foi praticamente interrompida. Washington tem um acordo com a ilha para emitir 20 mil vistos migratórios anuais, mas não emitiu quase nenhum.
Enquanto isso, Cuba parou de aceitar voos que transportam “excludentes” dos EUA e deixou o governo Biden sem um caminho para deportá-los. “Esse é o principal empecilho que os EUA têm para aqueles que cruzam sem autorização”, disse Selee. “Eles não têm isso no momento.”
A pandemia aumentou o drama social provocado pelas sanções. O número de fugitivos baterá recorde neste ano
A jornada dos migrantes cubanos, embora ainda traiçoeira, também se tornou mais viável. Historicamente, os fugitivos tentavam atravessar o estreito marítimo de 144 quilômetros por meio de jangadas, balsas sequestradas ou até mesmo caminhonetes flutuantes. As vias legais para sair eram escassas, os inspetores do governo faziam um inventário dos bens pessoais – até dos talheres – antes de conceder vistos de saída. Hoje em dia, o Partido Comunista afrouxou, no entanto, as restrições de viagem, e o maior problema passou de conseguir um visto para deixar a ilha a obter um visto para outro país.
Isso mudou em novembro passado, quando o governo de Daniel Ortega permitiu que os cubanos viajassem sem visto para a Nicarágua (aparentemente, para criar uma moeda de troca com os EUA, enquanto a camarilha dominante negocia o alívio das sanções). Isso criou uma ponte terrestre até os EUA para os cubanos mais ricos, aqueles com um carro ou uma casa para vender, ou com parentes do lado de fora. Agora eles podem comprar uma passagem de ida para Manágua por 4 mil dólares e depois seguir por terra até a fronteira sul dos Estados Unidos.
Em vez de se esgueirar, os cubanos tendem a se aproximar das autoridades de imigração para pedir asilo. Com as passagens de fronteira de todas as nacionalidades para os EUA prestes a superar todos os registros neste ano, as autoridades estão sobrecarregadas, o que aumentou o atraso em casos de asilo. “Essa é uma enorme vantagem para os cubanos”, disse William LeoGrande, professor de governança na Universidade Americana. “Porque, uma vez que entram, o relógio começa a correr… Se estiverem nos Estados Unidos por um ano e um dia, se qualificam para solicitar residência permanente, privilégio que nenhuma outra nacionalidade tem.”
Rafael Hernández, editor da revista estatal de ciências sociais Temas, disse que obter residência permanente nos Estados Unidos sob a Lei de Ajuste Cubano é simples. “É como tirar um dente do siso, algo que apenas você tem de passar.” Mas a viagem não é isenta de riscos: especialistas dizem que os cubanos estão entre as nacionalidades mais propensas a ser sequestradas quando se aproximam do lado mexicano da fronteira. Grupos criminosos sabem que gastaram milhares de dólares para chegar tão perto e, provavelmente, têm parentes nos Estados Unidos para pagar um resgate.
Dayane Medina, 32 anos, e seu marido, Manuel, venderam no ano passado a casa, os brinquedos dos filhos e a maioria de suas roupas para comprar vistos mexicanos. O plano era se reunirem com a avó dela em Jacksonville, na Flórida, cruzando a fronteira perto da cidade de Mexicali. Por 21 mil dólares um “coiote” tinha arranjado para que eles entrassem nos Estados Unidos: esperar as comportas fecharem antes de cruzar uma represa com suas filhas de 3 e 5 anos. Assombrada por histórias de tiroteios, estupros e roubos, Medina, entretanto, mudou de ideia. Agora está decidida a ficar no México. “O caminho é muito incerto”, disse em entrevista por telefone. “Sempre há medo quando crianças estão envolvidas.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pelo mar e pelo ar “
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