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Pedras no sapato

Sem maioria absoluta no Parlamento, Emmanuel Macron vê a esquerda revigorada e a extrema-direita fortalecida

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Cerco. Melénchon (à esquerda) e Marine Le Pen (à direita) prometem infernizar o segundo mandato de Macron, o grande derrotado nas eleições legislativas - Imagem: RN 2022, Bertrand Guay/AFP e Gonzalo Fuentes/AFP
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Emmanuel Macron foi o grande perdedor das eleições de 19 de junho. Elegeu 245 deputados graças à aliança ­Ensemble com dois partidos centristas, bem menos do que os 308 ­deputados que seu partido La République En Marche obteve, sozinho, em 2017. Foram 44 cadeiras abaixo das 289 necessárias para garantir maioria absoluta. A capa do Libération de 20 de junho trazia uma só expressão: “La gifle” (A bofetada), com a foto de Macron a olhar para o chão. No Le Monde, a manchete: “Macron atingido pelo voto de sanção”. O jornal destacava o crescimento do partido de Marine Le Pen, que elegeu 89 deputados (eram oito antes). A união dos quatro partidos de esquerda (Nupes), liderada por Jean-Luc Mélenchon, fez 142 deputados, dos quais 79 são melenchonistas (eram 17).

Como de praxe, a primeira-ministra, Elisabeth Borne, apresentou sua demissão na terça-feira 21 e foi reconfirmada no cargo. Com duas oposições fortes, a esquerda unida e a extrema-direita revigorada, o Parlamento francês vai ganhar mais importância e voltar a ser o centro da vida política. No primeiro mandato, Macron governou em modelo de hiperpresidencialismo. No novo mandato, vai ser impossível o exercício do poder verticalizado do presidente, que os críticos chamam de “Júpiter”, por centralizar as decisões como um monarca. Governar vai exigir permanentes negociações para aprovação das leis do seu esquálido programa presidencial, resumido pelos adversários em um só item: a elevação da idade da aposentadoria de 62 para 65 anos.

O parlamento vai ter um papel central no novo mandato de Macron. O debate vai ser mais acalorado e os opostos vão se enfrentar com mais vigor. Os dois grupos de oposição, a Nupes e o partido de Le Pen, o Rassemblement ­National, vão exercer oposição sistemática ao inimigo comum. Macron perdeu, ainda, dois aliados importantes, derrotados nas urnas: seu ex-ministro do Interior, Christophe Castaner, e o presidente da Câmara, Richard Ferran. Sem mandatos, três ministras deixaram o governo, por norma previamente fixada. Ministro não reeleito sai.

A terceira força da Assemblée ­Nationale é o Rassemblement National (ex-Front National), de Marine Le Pen, que obteve 17,3% dos votos. Nunca o partido de extrema-direita fundado pelo ex-torturador da Guerra da ­Argélia, ­Jean-Marie Le Pen, teve representação tão importante. Nem ­Marine esperava este resultado. O sucesso da herdeira contou, de certa forma, com a cumplicidade de Macron. Por temer o crescimento da Nupes, que tinha como ­objetivo conseguir a maioria para fazer de ­Mélenchon primeiro-ministro, o presidente e seus ministros não recomendaram voto no candidato que se opunha à extrema-direita no segundo turno.

Elevar a idade de aposentadoria de 62 para 65 anos, principal projeto do governo, ficou mais difícil

Depois do primeiro turno das eleições presidenciais deste ano, Macron, que teve apenas escassos 27,8% dos votos, precisava da esquerda para derrotar Le Pen, que obteve 23,1%. Reeleito com os votos da esquerda que mobilizou a frente republicana – menos vigorosa que em 2017 –,

o presidente tentou influir no segundo turno da eleição legislativa. Recorreu à velha tese da necessidade de “barrar os dois extremos”, tão ao gosto dos adeptos da terceira via no Brasil, e estimulou a ideia de que a esquerda unida e o partido de extrema-direita eram faces da mesma moeda. Em vez de abraçarem o lema “nenhum voto à extrema-direita”, os ministros preferiram alertar os eleitores a respeito do “perigo da extrema-esquerda”, que seria “um perigo para a democracia”. E pensar que muitos analistas políticos avaliaram que Macron iria incluir a esquerda no seu novo mandato, levando em conta que sem os eleitores ­gauche ele nunca teria alcançado 58,55% dos votos para vencer Le Pen.

O novo Parlamento será mais diversificado, com deputados oriundos de classes populares, entre eles Rachel Keke, camareira de hotel e líder sindical eleita pela Nupes. Há cinco deputados de origem operária e dois estudantes universitários. A paridade entre homens e mulheres ainda não foi atingida: são 215 ­deputadas e 362 deputados.

No departamento de Seine Saint-Denis,­ o mais pobre da França metropolitana, com 1,6 milhão de habitantes, as 12 circunscrições elegeram 12 candidatos da Nupes. “Nosso projeto visa reforçar os serviços públicos com funcionários contratados, titularizados, principalmente nas escolas e nos hospitais. Defendemos aumento salarial para todos, congelamento dos preços de produtos de primeira necessidade, combustíveis e moradia. Defendemos a aposentadoria aos 60 anos, até como mecanismo de criação de empregos e de justiça, com a valorização do tempo livre. E o planejamento ecológico como motor da economia”, explica a franco-brasileira Silvia Capanema, eleita em 2015 e reeleita em 2021 como “conseillère départementale” de Saine-Saint-Denis (deputada estadual), pela França Insubmissa. Ela também integra o Parlamento da União ­Popular e da Nupes, além de ser professora da ­Sorbonne Paris Nord.

O voto em Mélenchon na eleição presidencial foi majoritário na Seine-Saint-Denis.­ Chegou a 60% em algumas circunscrições, pois o candidato defende os imigrantes e os muçulmanos contra as discriminações da extrema-direita. Despertar o interesse dos jovens para a política é um desafio para a democracia francesa. Mas há exceções. A Polinésia Francesa elegeu Tematai Le Gay, de 21 anos, o mais jovem deputado da República, apoiado pela Nupes. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pedras no sapato”

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