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Partido Socialista erra ao não aprofundar alianças em Portugal

Oxalá me engane, mas o que podemos esperar é o crescimento do ressentimento. E o ressentimento é uma poderosa força política

Urnas silenciadas. Os eleitores aprovaram a aliança com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, mas o PS de Costa decidiu ignorar. Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP
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Primeiro dia: a geringonça ganha as eleições em Portugal. Dia seguinte: a geringonça acaba. Eis um invulgar caso de uma política que não resiste ao seu próprio sucesso. O  governo que foi popularizado como “geringonça” – um governo só do Partido Socialista, mas apoiado no Parlamento pelas outras duas legendas de esquerda – teve três domínios de indiscutível triunfo: a) o êxito econômico, em particular no emprego; b) o discurso crítico da austeridade enquanto política econômica europeia; c) a unidade das forças políticas de esquerda como novidade política. Foi, aliás, este último aspecto estratégico que mais atenção e interesse despertou no meios políticos do Brasil. Agora, que ouvem dizer que acabou, perguntam-me o que aconteceu. Eis a minha análise. 

Esclareçamos de entrada que, a acreditar na sinceridade das declarações oficiais, ela não acabou definitivamente. Os três partidos que a compunham – o Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista – continuam a afirmar a intenção de cooperar e dialogar em torno de propostas concretas que serão analisadas caso a caso. No entanto, o aspecto mais relevante do anterior cenário – um acordo parlamentar que  garantiu a estabilidade política durante os quatro anos de legislatura – terminou. Se isso significa que a solução política está definitivamente enterrada é ainda matéria de especulação. Mas podemos dizer com segurança que nada será como dantes.

 

O Partido Comunista foi o primeiro a manifestar a intenção de não fazer qualquer acordo prévio. O fato é que os ganhos políticos foram distribuídos assimetricamente. Ao contrário dos outros parceiros, os comunistas perderam votos e deputados e querem agora ter as mãos livres. Aceitemos. Todavia, o que determinou o desenlace não foi esse episódio, mas a recusa do Partido Socialista em fazer um acordo programático com o Bloco de Esquerda, cuja soma de deputados é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Esta foi a decisão que provocou a ruptura – acabou a geringonça. 

A escolha dos socialistas é surpreendente, como surpreendente é, igualmente, o argumento usado para a justificar. Dizem preferir continuar a negociar medida a medida com todos os outros partidos de esquerda, entre os quais o Comunista, para não criar uma hierarquia entre eles. O argumento, pura e simplesmente, não faz sentido. Essa hierarquia existe e foi criada pelos únicos que a podem criar – os eleitores portugueses. Foi o povo e mais ninguém que deu ao Bloco de Esquerda a posição de terceira força política e que o tornou a única força política parlamentar que, com os socialistas, faz maioria absoluta no Parlamento (cerca de 127 deputados em um congresso com 230). Na verdade, ninguém está a dar nada ao Bloco de Esquerda que este partido não tenha conquistado. Mal vai a política que não reconhece as realidades eleitorais. 

Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP

Acresce que um dos sucessos mais celebrados pela solução chamada “geringonça” foi o de quebrar uma cultura política que excluía as legendas à esquerda do Partido Socialista das soluções governativas, remetendo-os para a sua condição de agremiações de protesto. Para fazer valer a verdade, é necessário dizer, no entanto, que essa situação era igualmente alimentada pelos próprios partidos quando recusavam fazer alianças e estabelecer compromissos, assumindo um orgulhoso distanciamento da governação que os preservava de responsabilidades. 

Seja como for, a experiência parlamentar realizada mostrou que esse preconceito político teve o seu tempo e que nada o justifica agora. Quebrou-se um muro, diziam orgulhosos os socialistas. Sim, quebrou-se um muro, mas ficamos agora a saber que era apenas metade do muro. O resto ficou. A recusa em estabelecer um acordo de legislatura com o Bloco de Esquerda parece assim evidenciar uma visão meramente utilitária: o bloco serviu para apoiar os socialistas em alturas de aflição (quando a legenda perde, e a direita não tem, porém, maioria ), mas não serve agora para momentos de normalidade (em que o Partido Socialista ganha, embora sem maioria absoluta). O que deveria ficar registrado como um gesto de grandeza e densidade histórica ficará reduzido a um expediente instrumental de sobrevivência política. 

O que deveria ser um gesto de grandeza e densidade histórica ficará reduzido a um expediente instrumental de sobrevivência política

Na verdade, esta situação é muito parecida àquela em que se viveu na Espanha e que foi muito referida na campanha eleitoral portuguesa. Também ali os socialistas espanhóis recusaram fazer uma coligação de governo com o Podemos (da mesma família política do Bloco de Esquerda), à espera de que aquele partido os apoiasse no Parlamento, sem terem lugares no governo. Em síntese, podeis apoiar o nosso governo, mas não integrá-lo. Podeis apoiar, mas não caminhar a nosso lado. Como se os 14% dos votos do Podemos não os colocassem legitimamente na situação de reivindicar o poder proporcional à responsabilidade que partilhariam com o apoio parlamentar que lhes é solicitado. A popularidade da solução geringonça é, no entanto, ainda tão forte nos respetivos eleitorados que nenhum dos partidos quis assumir a responsabilidade pelo seu fim. 

Começou a fase de apontar culpas e este não é um momento bonito. Uma das mais importantes mudanças políticas que a geringonça permitiu foi trazer esses partidos para o denominado “arco da governação”, introduzindo-os nas dificuldades das responsabilidades executivas e na dura realidade da política que nem sempre representa uma clara escolha entre o bem e o mal, consistindo, muitas vezes, na escolha do mal menor. Esse é o fracasso que resta. Oxalá me engane, mas o que podemos esperar é o crescimento do ressentimento. E o ressentimento é uma poderosa força política.

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