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Partido Comunista chinês chega aos 100 anos buscando afastar velhos estereótipos

Celebrações lembram trajetória da revolução chinesa, marcada por acertos e controvérsias; Xi Jinping quer plano para melhorar imagem do país

Cidadãos chineses levantam bandeiras nacionais e símbolos comunistas no aniversário centenário do partido. Foto: Noel Celis/AFP
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“Eu gosto mais do meu antigo lugar. Vivemos na cidade, mas não temos trabalhos fixos. Não temos renda estável para cobrir nossos gastos diários. Em nosso povoado, éramos donos da nossa casa e cultivávamos nossa comida, porque o custo de vida era relativamente baixo. De fato, o governo conseguiu um trabalho para o meu irmão, mas o salário está longe de ser suficiente para manter a família.”

 

As declarações acima, veiculadas no documentário?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> A luta contra a pobreza da China (2020), são de um jovem chinês que trocou o campo pela província de Guizhou graças a um programa de moradia do governo comunista. O objetivo, segundo o governo, é superar a pobreza, transferindo para os centros urbanos a população que vive em locais com poucos meios de sustento, em regiões de preservação ambiental ou vulneráveis a desastres naturais.

Famílias de até quatro membros podem ganhar apartamentos de até 80 metros quadrados em centros urbanos. A satisfação pela casa própria, como mostra o desabafo do rapaz, não é compartilhada por todos os beneficiários.

Mas se engana quem achar que o governo chinês não tem ciência dessas críticas, mesmo porque a investigação jornalística, assinada por Robert Lawrence Kuhn, intelectual americano e comentarista de veículos como CNN, BBC e Bloomberg, foi exibida pela estatal chinesa CGTN. Mais do que sabê-las, é possível interpretar que o governo quer mostrar ao mundo que faz uma avaliação sóbria de si, afastando-se, portanto, dos estereótipos de uma ditadura que vive de falsas propagandas.

O PCCh chega aos 100 anos centrando esforços em obter a confiança internacional, conforme o próprio presidente Xi Jinping defendeu em sessão no Bureau do Comitê Central, em 31 de maio. A publicidade do governo deve estar voltada, segundo ele, a “ajudar os estrangeiros a entender que o Partido está buscando nada mais que o bem-estar do povo chinês”, conforme noticiou a estatal Xinhua. O presidente também reforçou a necessidade de introduzir a cultura chinesa no exterior, “para formar uma imagem confiável, admirável e respeitável da China”.

O presidente da China, Xi Jinping. Foto: Reprodução

Seus principais canais de persuasão são as televisões estatais, presentes no mundo inteiro. A existência delas alarmou Hillary Clinton, secretária de Estado de Barack Obama: “Nós estamos em uma guerra de informação e estamos perdendo”, disse, citando o surgimento de emissoras chinesas e russas.

Foi por meio dessas emissoras, por exemplo, que o governo chinês expôs a sua versão sobre os violentos protestos de Hong Kong, que ascenderam entre 2019 e 2020 após a aprovação de uma lei de segurança nacional. Enquanto meios ocidentais tratava os manifestantes como pró-democracia, a?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> CGTN dizia que os protestos incitavam o caos e que favoreciam interesses externos. A rede também rebate denúncias e atribui a questão dos uigures em Xinjiang a uma?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> “luta contra o terrorismo”.

A CGTN é ligada à CCTV, megaestatal chinesa fundada há mais de 60 anos e que hoje opera mais de 40 canais. Está em lugares que nem mesmo as TV brasileiras têm jornalistas como correspondentes. Na África, a CCTV, instalada no Quênia, foi a mídia internacional pioneira, desde 2013, em reunir notícias do continente e distribuí-las para um público global. Conforme observou o pesquisador Iginio Gagliardoni, no artigo China como persuasora, ao passo que retratava a África com menos sensacionalismo sobre a fome e a violência, a estatal apresentava um lado alternativo do regime chinês. “O que a CCTV está procurando neste crescente mercado africano não parece ser lucro, mas sim, influência”, assinala o britânico.

A CCTV também está presente no continente americano, por meio da CCTV America e da multiestatal Telesur, chegando a países da América Central. No Brasil, a rede chinesa tem parceria com a Band, desde 2019, onde apresenta o programa Mundo?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> China e chegou a exibir a série Frases Clássicas Citadas pelo Presidente Xi Jinping. Em espanhol, o China Radio International dispõe de um podcast diário de 20 minutos via Google Podcasts com a agenda do PCCh. O boletim de 30 de junho destacou a “devoção dos comunistas ao povo”, relatou a festa da população no centenário da legenda, reportou a “honestidade” da diplomacia chinesa em temas como Xinjiang e a Covid-19 e criticou os Estados Unidos.

“A emissora alcançou um alcance verdadeiramente global, o que significa que seu conteúdo tem o potencial de moldar as percepções de centenas de milhões de pessoas dentro e fora das fronteiras da China”, considerou Sarah Cook, diretora de pesquisa para a China na organização americana Freedom House, em artigo de 2019. “O fato de que esse conteúdo é fortemente distorcido para se adequar à agenda política do PCCh representa um desafio crescente para consumidores de notícias, reguladores, jornalistas, anunciantes e outros ao redor do mundo.”

Estatal chinesa está presente na África e leva imagem alternativa do país. Foto: Reprodução/CGTN África

O PCCh entre glórias e reveses

Certamente, há o que mostrar de positivo na gestão do PCCh, especialmente por levar às alturas um país que passou pelo “século de humilhação”, período iniciado em 1840, quando o território, sob a dinastia Qing, foi repartido pelas potências coloniais da época, como Inglaterra, França, Rússia, Japão, Estados Unidos.

Naquela época, as potências industriais introduziam ópio em larga escala na China, em troca de seda, porcelana e chá, e traficavam trabalhadores chineses para plantações e construções em outros países. Os camponeses pobres eram maioria da população, muitos sem-terra, trabalhadores de latifúndios, prestando serviços sem receber pagamentos e pagando tributos imperiais. O cenário só foi desfeito depois de uma dura luta do Exército Vermelho, comandado por Mao Tsé Tung, contra a invasão japonesa e a frente reacionária de Chiang Kai-Shek, chegando então em 1949, quando o PCCh assumiu o poder.

Tanto tempo depois, em 2020, a China se vê retirando 850 milhões de pessoas da pobreza, após atingir a meta do 13º Plano Quinquenal (2016-2020). Seu IDH passou de 0,530 em 1975 para 0,761 em 2019, o que indica melhorias na renda e na escolaridade; o grau de urbanização teve crescimento impressionante (a população urbana passou de 18% em 1978 para 44% em 2016); e sua posição é de liderança na tecnologia e na preservação ambiental. Os avanços baseiam altos índices de popularidade divulgados recentemente pelo People’s Daily, jornal do PCCh: dados amparados em pesquisas da Universidade da Califórnia e de Harvard mostram aumento de confiança no governo, entre 2019 e 2021, de 8,23 para 8,87, em uma escala de 1 a 10, e 96% de aprovação do governo em 2016.

O PCCh já ultrapassou, hoje, a marca de 91 milhões de filiados, 6,6% da população total, segundo a empresa alemã Statista. O governo diz que as?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> lideranças políticas são selecionadas a partir das bases populares, por diversas formas de eleições, avaliações internas e pesquisas de opinião. Xi Jinping chegou ao poder em 2013 e foi reeleito em 2018 por votações no Congresso, podendo passar de 2023 no cargo. Apesar de o PCCh ser majoritário, o governo diz que outros 8?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> partidos compõem o sistema político chinês.

Soa curioso, simultaneamente, que um partido centenário, com uma rede robusta de comunicação e que ostenta alta popularidade, ainda tenha dificuldades de convencer o mundo de que é confiável.

Para Diego Pautasso, cientista político e especialista nas relações internacionais chinesas, o projeto midiático do PCCh vem de uma percepção de que os Estados Unidos se consolidaram como hegemônicos no hard e no soft power após a 2ª Guerra Mundial, criando, portanto, uma infraestrutura de exercício de poder que passa pelo domínio da produção cultural, vide Hollywood e as agências de notícias. A China, porém, tornou-se a principal rival dos EUA. Os americanos, obviamente, adotaram estratégias para frear os chineses que, para além das tentativas de desmembramento regional, do cerceamento militar e da guerra comercial, envolvem sobretudo a construção de uma narrativa para arranhar a imagem da potência desafiante.

“As narrativas sobre a ameaça chinesa, o governo autoritário, o desrespeito aos direitos humanos, os campos de concentração uigures, o trabalho escravo, o vírus comunista, formam um histórico de construção de imagem”, diz Pautasso. “A China precisa de uma estratégia no campo das ideias para estabelecer uma imagem alternativa.”

Os investimentos bilionários no plano de publicidade chinês estariam, portanto, localizados em um conjunto de tarefas maior, expressas no campo diplomático. Para Pautasso, a China tenta se associar, por exemplo, ao desenvolvimento de países mais pobres, como os africanos, ao multilateralismo, à não-intervenção em assuntos domésticos, à exportação de vacinas, ao fornecimento de proteção contra a Covid-19.

Partido Comunista da China completa 100 anos em julho. Foto: Hector Retamal/AFP

Ao mesmo tempo, Pautasso observa que o PCCh não é reconhecido apenas por glórias, inclusive pelos militantes. O balanço é negativo sobre o Partido em períodos como o Grande Salto e a Revolução Cultural.

A questão é tratada no livro A Revolução Chinesa (Editora Unesp, 2003), do pesquisador Wladimir Pomar. Após a conquista do poder, em 1949, os recursos públicos em infraestruturas foram tamanhos que fizeram a China chegar em 1957 já com indústrias de produção de aço, aviões, automóveis, entre outras. Esses investimentos, estimados em 32 bilhões de dólares, foram basicamente arrancados da agricultura, por meio de impostos, da utilização de fundos de cooperativas e do emprego de jornadas voluntárias de trabalho. Como resultado, a renda familiar camponesa caiu 20%, entre 1953 e 1957. Por mais que a fome endêmica tivesse sido eliminada, a população seguia pobre.

As estratégias econômicas da revolução socialista esbarravam na necessidade de criar grandes massas de empregos e de manter salários sem estourar o orçamento. Contudo, a rápida transformação socialista da propriedade privada e das relações de trabalho não foi acompanhada de um ritmo elevado de criação de novos trabalhos, o que fez a insatisfação crescer contra os rumos do socialismo chinês. O debate crescente era sobre como elevar a capacidade produtiva do país e, ao mesmo tempo, garantir o bem-estar da população. Assim, era deflagrado o Movimento das Cem Flores, contra os defeitos da revolução socialista, com greves operárias e nas cooperativas, manifestações estudantis e protestos de intelectuais.

Nesse contexto, narra Pomar, em um movimento de retificação, Mao Tsé Tung propôs o “Grande Salto” em 1958, com a descentralização de empresas subordinadas ao governo central. Milhões de camponeses se tornariam fabricantes industriais de quintal, o que, supostamente, resultaria em aumento na capacidade produtiva. Mas as desproporções na produção e a dispersão na força de trabalho desembocaram num desgaste desse sistema, o que acabou no colapso da agricultura e na volta da fome em algumas regiões. Mao Tsé Tung, então, admitiu a responsabilidade pelo desastre, e a situação crítica se estendeu até a década seguinte.

Cresceu nos anos de 1960 uma indisposição entre o governo e movimentos de intelectuais e artistas, em meio a suspeições mútuas sobre o real comprometimento com a “luta de classes”, em oposição ao “caminho capitalista”. O PCCh, então, debruçou-se em campanhas de propaganda para reafirmar seus princípios revolucionários. As tensões foram o pano de fundo para a publicação dos 16 pontos da Revolução Cultural pelo governo, que apelavam às massas para, entre outras tarefas, reformar o ensino, a literatura e a arte e expurgar a “ideologia burguesa”. Chineses passaram a integrar comitês independentes de aplicação da “democracia direta”, conforme as orientações da Revolução Cultural, situação que chegou ao extremo perigo em 1969, escreve Pomar, com prejuízos à produção e o cometimento de crimes contra os que se opunham aos “rebeldes revolucionários”.

Há uma série de questões controversas no curso da revolução chinesa, mas, para Pautasso, certamente o Grande Salto e a Revolução Cultural são os momentos históricos que mais rendem críticas ao PCCh, seja na condução da economia, como no tratamento a intelectuais e artistas, e até mesmo na prática de corrupção.

“A revolução chinesa é marcada por muitos erros e sobressaltos”, avalia. “Ocorreu um debate desde 1980, com a ascensão de Deng Xiaoping, com um balanço extremamente crítico. Talvez aí resida um pouco a longevidade do partido: eles não se furtaram em colocar o dedo na ferida, em vez de vangloriar o passado.”

Escondidos dos projetos publicitários ou não, eventuais problemas da revolução chinesa seguramente estão sendo ofuscados pelo show de luzes no céu do país durante esta semana. Artigo no Global Times descreveu demonstrações de “orgulho genuíno” da população do país nas festividades dos 100 anos do PCCh em Pequim, na segunda-feira 28. As celebrações levaram o nome de “A Grande Expedição”, com uma apresentação artística dividida em 4 partes, em uma tela gigante, com a história do Partido, desde as guerras de resistência aos Estados Unidos, passando pela superação de tragédias da natureza e chegando à batalha contra a Covid-19. “A alegria chinesa desafia o escrutínio ocidental”, brincou o site estatal. Diante de tamanha festa, o governo não perderia a oportunidade de alfinetar os desconfiados do outro lado do mundo.

Festa em Pequim celebrou os 100 anos do Partido Comunista da China. Foto: STR/ AFP/China OUT

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