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Paris é uma festa

Do triatlo no poluído Rio Sena ao vôlei de praia sob a sombra da Torre Eiffel, os jogos na capital francesa foram incríveis

Paris é uma festa
Paris é uma festa
Aos olhos de todos. O ciclismo é o esporte mais democrático, não cobra ingresso de ninguém. O triatlo é o mais sofrido, sobretudo nas águas do Sena – Imagem: Antonello Veneri
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Para boa parte dos brasileiros, Paris 2024 deve ficar guardada na memória como as Olimpíadas das mulheres. Foram elas que conquistaram a maioria das glórias alcançadas pela delegação verde-amarela, a exemplo da ginasta Rebeca Andrade e da judoca Beatriz Souza, nossas atletas de ouro. Acompanhando o dia a dia dos jogos desde a cerimônia de abertura, o fotógrafo Antonello Veneri registrou momentos curiosos que ficaram à margem da cobertura esportiva. Na crônica a seguir, ele compartilha alguns de seus achados e explica por que ficou encantado com a festa parisiense.

Alegrias e decepções no Rio Sena

A cerimônia de abertura transformou o Sena num sambódromo, com desfile de barcos e atletas, música e dança, as arquibancadas vibrando dos dois lados do rio. Uma ideia genial para um evento barroco, exagerado e colorido, no qual a vaidosa Paris celebrou mais a si própria do que aos Jogos Olímpicos. Passado e presente misturados: cultura pop e Louvre, performance queer e cancã, Lady Gaga e Mona Lisa.

O espetáculo na sua integridade só foi visto pelos telespectadores, para os quais o show de 120 milhões de euros foi minuciosamente pensado. Para os 300 mil parisienses e turistas que acompanharam ao vivo, teve uma chuva teimosa e democrática do começo ao fim da cerimônia, a obrigar as famílias e muitos dos 85 chefes de Estado a saírem encharcados antes do final. Os que resistiram passaram o tempo fotografando os atletas que, dentro dos barcos, fotografavam o público, não conseguindo ver as atrações espalhadas ao longo dos 6 quilômetros do percurso aquático.

Nem mesmo os 8,5 bilhões de reais gastos para limpar o rio conseguiram afastar a ameaça dos coliformes fecais. Os atletas do triatlo foram obrigados a competir no Sena, não tendo os organizadores um plano B. Para se proteger de doenças intestinais, alguns atletas tomaram probióticos e outros, como o americano S. Rider, tentaram técnicas mirabolantes, como não lavar as mãos depois de ir ao banheiro. “Bebi muita água (do Sena), obviamente não tem gosto de Coca-Cola. Enquanto nadava debaixo da ponte, senti e vi coisas nas quais não deveria pensar muito”, comentou a belga J.Vermeylen, logo após a competição.

Esporte, derrotas e torcidas

O triatlo é o esporte mais duro das Olimpíadas. Você inicia a prova jovem e termina idoso. São 1,5 quilômetro de natação, 40 quilômetros de bike e outros 10 quilômetros de corrida que levam à exaustão. Nas últimas rodadas da corrida, vi atletas em estado de êxtase, feito pinturas da Renascença, mas também santos perfurados por flechas, sofrendo em transe como São Sebastião.

A esgrima não deixa ninguém indiferente, combinando uma elegância nos movimentos com uma tensão nervosa absurda. Os atletas ora dançam com leveza, ora tentam picar-se freneticamente, feito muriçocas.

Uma chuva teimosa e democrática afugentou parte do público na exagerada e colorida cerimônia de abertura

O ciclismo é o esporte mais democrático. Ninguém precisa de bilhete e QR ­Code, todo mundo se diverte, as torcidas se juntam, os ciclistas interagem e cumprimentam o público durante a competição. Em retribuição, os aficionados permanecem horas debaixo de chuva ou sol para ver os atletas passarem, ainda que por poucos segundos. Os jovens atletas e as mais recentes modalidades olímpicas estão, por sinal, mudando a cultura da torcida olímpica. Não se torce mais contra o adversário. A skatista Laryssa Leal, de 16 anos, e outros atletas estão ensinando isso à minha geração.

Dos 10.500 atletas participando dos Jogos, 5.250 são mulheres e 5.250, homens. Chegamos à paridade de gênero, ao menos de fachada. Ser mulher não é nada fácil, principalmente quando se tem uma condição clínica (hiperandrogenismo) que eleva os níveis de testosterona, como é o caso da boxeadora argelina Imane Khelif. Políticos de extrema-direta, como Donald Trump, e até a escritora do Harry Potter aproveitaram para questionar identidade e gênero da atleta, espalhando fake news. A boxeadora argelina continuou socando forte as adversárias, até ganhar sua medalha.

Vi muitos atletas, construídos para ganhar, perderem com graça e dignidade. Saber lidar com a derrota é poesia pura, no esporte e na vida. Como canta o músico italiano Paolo Conte, “era um mundo adulto, se errava de forma profissional”. A torcida mais alto-astral é a brasileira. Na vitória ou na derrota, sempre comemora. Esta avaliação, claro, é de um jornalista imparcial! Já a Marselhesa é, indiscutivelmente, o hino mais empolgante de todos.

Os jovens que acompanham as Olimpíadas logo se apaixonam pelos esportes. O nadador Leon Marchand ganhou cinco medalhas de ouro e se tornou ídolo na França. Em uma loja da rede Decathlon, vi que a área da natação estava cheia de pais e crianças comprando sungas e óculos. Dali, surgirão novos campeões.

Estética e comida

As modas italiana e francesa competem pela qualidade, mas os uniformes dos atletas são decepcionantes. Os do Brasil foram bastante criticados nas redes sociais. O que posso dizer é que, ao vivo, esses detalhes passam despercebidos.

Em alguns memes maliciosos, a mascote dos Jogos virou um enorme clitóris. Se bem que, vendo a mascote de perto, parece mesmo. Sem malícia. Já um atleta francês do salto com vara, que esbarrou o pênis no sarrafo e perdeu a competição, recebeu uma proposta de 250 mil dólares de um site pornô. A realidade é meme ou o meme é realidade?

Humores. Mona Lisa continua rindo dos visitantes do Louvre. Oito policiais foram mobilizados para deter um pickpocket. A torcida brasileira ainda é a mais animada – Imagem: Antonello Veneri

Atletas reclamaram da qualidade e da escassez de comida na Vila Olímpica, bem como do calor e do desconforto das camas. Em entrevista ao jornal italiano La Repubblica, Michael Phelps, o maior nadador da história, com 23 medalhas de ouro, lamentou a falta de espírito olímpico dos colegas: “Era perfeito? Não. Meus pés ficavam para fora porque as camas eram muito curtas. Estava quente? Sim, estava. Trouxemos dois ventiladores. E um colchão também. Mas eu nunca teria ido para um hotel. Há um mundo na Vila Olímpica. Ir à cantina foi uma experiência magnífica, corpos diferentes, gigantes, pequenos, olhos e rostos se abrindo para outros continentes”.

O glamour parisiense

Paris é uma festa, observou Hemingway num passado distante, mas nunca vi esta cidade tão alegre como agora. Além da beleza arquitetônica, ela possui uma rede de ciclofaixas de tirar o fôlego, que vai do centro até a periferia extrema. Ver tantos turistas e atletas andarem de bicicleta pela cidade é uma conquista que se deve à doce garra da prefeita socialista Anne Hidalgo. Melhor ir de bike do que a nado pelo Sena.

Atualmente, há ao menos oito exposições nos museus franceses sobre esporte. A principal é Olympisme, no Louvre. Poucos sabem que, de 1912 a 1948, os Jogos Olímpicos tinham até competições de arte. A relação entre arte e esporte parece coisa estranha, mas, assistindo às competições, torna-se evidente: ambos eternizam a beleza, a derrota, o êxtase, a força, o sofrimento e, mais que tudo, aquele instante decisivo em nossas vidas.

A Mona Lisa continua sendo a última rainha da França, com aquele sorriso “sabe de nada, inocente!”. Firme e forte, ela ri de tudo: da multidão que se espreme em busca de uma selfie com ela e da exposição Olympisme, praticamente vazia. Uma diretora do Louvre relatou numa entrevista que 80% do público vai ao museu só para ver essa tela de Leonardo da Vinci.

Perto de 45 mil policiais circulam pelas ruas de Paris, devido, sobretudo, ao temor de ataques terroristas. Mas o clima permanecia tranquilo até a conclusão desta crônica. Só registramos a prisão de um ­pickpocket, o famoso ladrão parisiense que bate carteiras sem a vítima perceber.

As reclamações sobre a Vila Olímpica irritaram Phelps, o maior nadador da história: “Nunca teria ido para um hotel”

O overturism – excesso de turistas, em bom português – é um problema de todas as grandes capitais europeias. Muitos parisienses fizeram suas malas e decidiram fugir durante o período das Olimpíadas.

Nós, fotógrafos, pudemos registrar o vôlei de praia embaixo da Torre Eiffel, o ciclismo passando pela colina do Sacre Coeur, a equitação em Versalhes, a esgrima no Petit Palais, a natação no Sena e outras maravilhas, mas a foto mais bonita das Olimpíadas foi feita no Taiti por um colega da AFP, que capturou o surfista brasileiro Gabriel Medina “voando”.

Considerações finais

Os parisienses são campeões do mundo em reclamação, não há como negar. Implicam com coisas pequenas, com um certo gosto teatral. Adoram a disputa verbal, mas raramente passam para as vias de fato. Dizem que o parisiense é mal-humorado. Isto se explica pelas suas duas almas, uma nórdica e outra latina, um pouco como os queijos que produzem: casca dura e interior mole. Um amálgama de razão e sentimento que os atormenta. E é por isso que gosto tanto deles e dessas Olimpíadas insólitas. •

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Paris é uma festa’

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