Mundo
Para recuperar o Mercosul
O bloco, importante para o Brasil, está natimorto, mas é possível reavivá-lo com algumas medidas focadas


O Mercosul apenas sobrevive. Vários fatores geraram esta situação: as mudanças no cenário político, principalmente nos últimos cinco anos, a política predatória do governo brasileiro, o viés liberal e atlanticista, a omissão dos últimos governos dos sócios menores e as dificuldades econômico-financeiras que afetam o governo argentino.
A perda de dinâmica do intercâmbio comercial intrabloco tem dificultado a superação das manifestações de alguns governos, declarando preferência por uma área de livre-comércio, defendendo ainda a negociação de acordos comerciais bilaterais com grandes potências (EUA, China etc.), alinhamento individual com outros blocos de integração (Aliança do Pacífico) ou adesão individual a acordos como o da União Europeia. Negociações que, se efetivadas, comprometeriam seriamente a integração do Cone Sul e a retomada da Unasul.
Sem aprofundar nas estatísticas, podemos ver como esse quadro tem repercutido no Brasil:
1. Em 2021, as exportações brasileiras chegaram a 280 bilhões de dólares. As importações atingiram 219 bilhões. O comércio nos dois sentidos foi de quase 500 bilhões.
2. O comércio entre os países do Mercosul chegou a 27,8 bilhões de dólares em 2011 e diminuiu para 16,9 bilhões em 2021. Para comparar, o comércio total com a Asean, de 8,3 bilhões de dólares em 2011, subiu para 19 bilhões no ano passado. Com a China, subiu de 46,5 bilhões em 2011 para 90 bilhões em 2021.
A partir da certeza de que o Mercosul beneficia o Brasil, apresentamos a seguir algumas propostas. Na impossibilidade de abarcar todos os pontos importantes, priorizamos temas relacionados ao desenvolvimento produtivo e social.
Desenvolvimento,emprego e renda
Na Argentina, no Brasil e no Paraguai, o desemprego é alto, assim como a precarização das relações de trabalho. Apenas no Uruguai ainda se mantém um importante grau de proteção. No Brasil, 12 milhões de trabalhadores estão desempregados e mais da metade em condições precárias. No Paraguai, os empregos nas “maquilas” (que abrigam mais de 200 empresas brasileiras) são os que mais crescem, com precária regulamentação laboral e seguridade social.
Ações imediatas: diagnóstico do quadro, estabelecendo medidas emergenciais para atendimento das áreas mais críticas.
O importante é mirar na integração produtiva, na geração de emprego e nas instâncias de participação popular
Reconstrução da integração produtiva
Os programas de desenvolvimento agrícola e industrial têm de levar em conta empreendimentos que ampliem a oferta de emprego no âmbito do Mercosul e possam contribuir para a construção de cadeias produtivas, integrando iniciativas industriais e a agropecuária.
Ações imediatas: 1. Estimular os produtores, empresas agrícolas e agricultura familiar, com financiamento e incentivos, a processar os seus grãos, carnes, couro, minério, etanol, fibras, frutas etc., no entorno dos locais de origem. 2. Promover o desenvolvimento equitativo em todos os países do Mercosul, para fortalecer o bloco sub-regional e atrair a vizinhança sul-americana, mesmo os integrantes de outros processos de integração (Comunidade Andina e Aliança do Pacífico).
Focem
O Focem, fundo criado em 2005, tem de voltar a ser o instrumento de promoção, se possível como banco de desenvolvimento, capaz de acrescentar às contribuições financeiras governamentais mecanismos de captação de recursos e ter como foco a criação de cadeias de valor em dois ou mais países do Mercosul, em setores de maior utilização de mão de obra. O Focem deveria também dar prioridade ao financiamento de pequenas empresas, à agricultura familiar e à economia solidária.
Direitos trabalhistas e sociais
Nos últimos seis anos, as áreas de tratamento dos temas trabalhistas foram relegadas a uma insignificante categoria, principalmente pela política antissocial do governo brasileiro. A Declaração Sociolaboral (DSL) do Mercosul, por exemplo, é um documento de caráter promocional e que deve zelar pelo cumprimento das regras acordadas. O Observatório do Mercado de Trabalho pode ser importante instrumento para realizar uma radiografia do mercado no bloco e constituir um espaço de pactuação tripartite de medidas que contribuam para a geração de emprego e qualidade.
Ações imediatas: é preciso atualizar o estudo sobre as legislações trabalhistas nacionais e promover estrutura para fiscalizar o cumprimento da DSL e dar condições de funcionamento ao Observatório do Mercado de Trabalho, que deve se relacionar com os Institutos Estatísticos Nacionais e produzir seus dados.
Dispersão. Os empreendimentos agrícolas e industriais precisam mirar a geração de empregos. O Parlasul avançou pouco – Imagem: Neil Palmer/CIAT e Parlamento/Mercosul
A dimensão social
Em 2007, foi criado o Instituto Social do Mercosul e, em 2008, foi aprovado o Plano Estratégico de Ação Social (Peas), que orientaria as ações governamentais e o trabalho do ISM em políticas de inclusão, acesso à educação, à saúde e aos serviços públicos em geral. O ISM foi praticamente abandonado nos últimos anos e o Brasil não paga as contribuições devidas ao organismo. A dívida acumulada supera 3 milhões de dólares.
Ações imediatas: saldar a dívida e destinar uma importante contribuição para que o ISM possa apoiar programas e ações de combate à fome e à desigualdade. Fortalecer a representação e a ação do Estado Brasileiro no ISM.
Atenção às fronteiras
O habitante da fronteira merece atenção especial e prioritária em tratamento à saúde, educação, trânsito fronteiriço, seguridade social e obtenção de emprego.
Ações imediatas: simplificar e harmonizar os requisitos sanitários para o trânsito transfronteiriço de pessoas, animais e mercadorias; facilitar o acesso aos estabelecimentos educacionais, no seu país e no país vizinho, sem discriminação, sem impedimentos, em moeda local ou em divisas, pelos órgãos oficiais; garantir atendimento público de saúde
e/ou acesso aos planos de saúde correspondentes; obter emprego em qualquer lado da fronteira, sem entrave documental, e ter reconhecidos os seus direitos trabalhistas e previdenciários.
Instâncias políticas e decisórias
Em mais de 30 anos, houve uma profunda transformação do bloco, com a adição de novas estruturas, mas sem a preocupação em rever o que ficava para trás. É preciso rever o labirinto existente, formado por inúmeros grupos temáticos, normas e instâncias superpostas. É preciso atualizar o funcionamento e o agiornamento das pautas, além de analisar o fluxo de informações e decisão no interior do bloco.
Os moradores das fronteiras entre os países do bloco merecem atenção especial
Foro Consultivo Econômico Social e Parlasul
O Foro Consultivo Econômico Social começou a funcionar em 1996. São representados no FCES diferentes segmentos da sociedade civil, que reivindicam espaço de observação nas áreas de negociação temática. O foro tem condições de alinhavar o consenso em propostas e demandas que contribuam para o avanço da integração. Não obstante, perdeu relevância e deixou de receber financiamento ou apoio da Secretaria do Mercosul para desenvolvimento de estudos e pesquisas. É preciso garantir que o FCES tenha pleno acesso às informações e tenha condições de funcionamento.
Criado em 2006, o Parlasul nunca conseguiu completar seu cronograma, que previa a eleição por voto direto dos representantes dos quatro países. Em 2019, em reunião de presidentes do Mercosul, decidiu-se pela suspensão das eleições diretas dos integrantes do Parlamento. Os atuais deputados cumprirão seu mandato, mas os próximos serão eleitos pelos respectivos Congressos nacionais, entre os próprios integrantes. O argumento dos presidentes foi realizar um corte de gastos desnecessários e reduzir a burocracia para o funcionamento do bloco.
Ações imediatas: reabrir o debate sobre o melhor sistema de funcionamento e representação, para garantir seu papel de zelar pela transparência e a democracia do processo, bem como representar a população dos quatro países em órgãos decisórios do Mercosul.
Finalmente
Nossa preocupação com este artigo foi trazer ao debate alguns pontos e debilidades que precisam ser corrigidos e reencontrados. Propostas que vêm de nossa experiência como atores diretos do processo de negociação do Mercosul, seja como representante do Estado brasileiro nas negociações, seja como parte do movimento sindical. •
*José Eduardo M. Felício é diplomata aposentado. Últimos cargos: diretor-executivo do Instituto Social do Mercosul, de 2017 a 2019, embaixador no Paraguai de 2013 a 2016, embaixador em Cuba, de 2010 a 2013, embaixador no Uruguai, de 2006 a 2010, encarregado de países sul-americanos, subsecretário e coordenador do Mercosul pelo Brasil entre 2003 e 2006.
Maria Silvia Portela de Castro é socióloga, mestra pelo Prolam-USP, foi assessora da CUT da coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul e do Foro Consultivo Econômico Social (FCES). Atualmente, é consultora do Instituto Lavoro e da Fundação Friedrich Ebert.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Para recuperar o Mercosul”
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