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Para o Trump 2.0, a Ucrânia é um problema da Europa, e não dos EUA

O presidente eleito não liga para a história, a moral e os ideais que servem de amálgama para a união com a Otan, que teve início na Segunda Guerra

Para o Trump 2.0, a Ucrânia é um problema da Europa, e não dos EUA
Para o Trump 2.0, a Ucrânia é um problema da Europa, e não dos EUA
Máscaras de Vladimir Putin e Donald Trump à venda em São Petersburgo, na Rússia, em 6 de novembro de 2024. Foto: Olga Maltseva/AFP
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Donald Trump gosta de bravatas. Não é por seus grandes discursos que podemos conhecer a fundo sua visão de mundo, mas pelas piadas debochadas que costuma contar sempre que se sente confiante e cheio de si. Uma dessas bravatas, ouvida pelos moradores da pequena cidade de Conway, na Carolina do Sul, no sábado 10 de fevereiro de 2024, deixa claro qual seria sua abordagem para um dos temas mais importantes da agenda de segurança internacional: a tensão nuclear entre a Rússia, a Ucrânia e as potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan.

A anedota contada por Trump aos moradores de Conway envolve ele e o presidente “de um grande país” europeu. Os dois estariam discutindo o fato de que nem todos os países da Europa que fazem parte da Otan cumprem o combinado de investir o equivalente a pelo menos 2% de seu próprio PIB em Defesa, o que estaria sobrecarregando o contribuinte americano, cujo governo gasta mais de 3% do PIB com suas Forças Armadas.

“Bem, meu caro, e se nós não pagarmos e formos atacados pela Rússia, você vai nos proteger?”, teria dito a Trump o tal presidente de “um grande país europeu”, ao que o líder republicano retrucou: “Não, nós não protegeríamos vocês. Na verdade, eu os encorajaria – referindo-se aos russos – a fazer o que diabo quisessem”.

O diálogo pode não ser verídico, mas é verossímil, porque, desde pelo menos sua primeira campanha eleitoral, em 2016, Trump repete o mantra de que os EUA sob seu governo não têm nenhum interesse em seguir como o fiador da segurança transatlântica. Trump não liga para a história, a moral e os ideais que servem de amálgama para essa união que teve início na Segunda Guerra Mundial.

A moral da anedota trumpista é a seguinte: se há um ganho simples, claro e imediato para os interesses da política doméstica americana – o que pode incluir, claro, o petróleo –, então não há interesse dos EUA em gastar dinheiro com essa guerra, seja ela qual for. Proteger a democracia ou uma ideia comum de Ocidente com a Europa, honrar a aliança transatlântica do pós-Guerra, tudo isso é “bullshit” para o contribuinte americano, a quem Trump se propõe a defender.

O presidente que volta à Casa Branca pela segunda vez agora é sobretudo um homem de negócios. Vladimir Putin sabe disso. Em 8 de fevereiro, portanto apenas dois dias antes da visita de Trump a Conway, o presidente da Rússia havia dito em entrevista ao âncora de extrema-direita Tucker Carlson, da Fox News, que ele queria “fazer um acordo” sobre os territórios ucranianos ocupados por Moscou. Aquilo foi uma oferta de negócios, à qual Trump reagiu dizendo que passaria a conta a seus parceiros da Otan caso voltasse à Casa Branca.

As negociações entre Trump e Putin coincidiram com mais uma votação no Congresso americano para renovar os pacotes de ajuda militar dos EUA à Ucrânia. Para quem quer entender o que um eventual terceiro mandato de Trump poderia trazer ao conflito nas fronteiras orientais da Europa, basta observar o que o próprio líder republicano vem dizendo há tempos, em público e com todas as letras: não estou nem aí para algo que não nos diga respeito, é a mensagem.

“Trump é, então, bem menos intervencionista do que se poderia esperar?”, alguém poderia se perguntar. A resposta é: depende.

O presidente eleito não deve relutar em tomar medidas de força – inclusive à margem das Nações Unidas e das normas do direito internacional, as quais despreza abertamente – quando considerar que há interesses econômicos vitais dos EUA em jogo. Só não espere que ele faça isso em razão de um valor abstrato como a defesa da democracia, a promoção da paz, a reconstrução de um Estado falido ou qualquer uma dessas coisas que foram mote de tantas ações internacionais ao longo dos últimos anos.

Ou seja, é mais provável que Trump se preocupe em resolver os problemas dos EUA com a Venezuela de Nicolás Maduro, de quem segue importando petróleo, do que dos problemas da Rússia com a Europa, cujas fronteiras estão um oceano distante do “contribuinte americano”.

Assim que tornou-se clara a segunda vitória eleitoral de Trump, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, publicou uma longa mensagem nas redes sociais, saudando a vitória do candidato republicano e cobrando dele a fatura de um diálogo bilateral ocorrido entre ambos, em setembro, quando Trump teria falado sobre sua visão de promover “a paz por meio da força” no mundo.

Talvez tenha faltado explicar a Zelensky que a paz que importa para Trump é a paz americana e a força que deve ser aplicada no caso da Ucrânia é, sobretudo, a força europeia.

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