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A Otan renasce das cinzas, mas os desafios de expandir a presença na Europa permanecem monumentais

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Em Madri, a Otan apresentou 71 novos compromissos e celebrou a adesão da Suécia e da Finlândia - Imagem: Otan
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A maioria das cúpulas se autodenomina “histórica” e seus participantes invariavelmente falam em “forjar um novo consenso”. A ­cúpula da Otan em Madri pode, no entanto, fazer tais afirmações com credibilidade, pois não há dúvida de que uma aliança militar que apenas alguns anos atrás foi notoriamente descartada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, como vítima de “morte cerebral” recuperou a vitalidade e reafirmou seu propósito estratégico.

Como disse o secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, a decisão da Otan de aumentar suas tropas de rápida mobilização para ao menos 300 mil, para impedir qualquer nova agressão russa, “constitui a maior reformulação de nossa dissuasão e defesa coletivas desde a Guerra Fria”. A determinação de todos os 30 países membros da aliança em aumentar os gastos com defesa não tem precedentes. Ainda mais significativa é a reafirmação da importância da organização como única instituição capaz de oferecer defesa coletiva ao continente europeu. Muitas vezes se esquece que Suécia e Finlândia usufruíam de uma garantia de segurança conjunta supostamente inabalável como parte de sua adesão à União Europeia, mas ambos os países consideraram prudente procurar aderir à aliança na cúpula de Madri, porque compreenderam a diferença entre aspirações da UE e capacidades da Otan, apoiadas pelo poderio militar dos EUA.

Ainda assim, como os líderes da Otan sabem muito bem, os desafios da aliança permanecem significativos. Uma afirmação feita na cúpula de Madri por gente como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, é que a adesão de Finlândia e Suécia tornou a Otan “mais europeia”. Essa é, porém, uma afirmação incrivelmente óbvia, pois todas as ampliações da Otan desde a criação da aliança ocorreram na Europa.

O que cada ampliação não conseguiu e o que a entrada de Suécia e Finlândia também não fará é reduzir a dependência esmagadora da Otan da contribuição dos Estados Unidos. A aliança transatlântica reagiu bem em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia. Desde março, a organização está presente não apenas com grupos de batalha multinacionais nos países bálticos e na Polônia, mas também na Eslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária. A presença estende-se do Báltico ao Mar Negro. A aliança militar também aumentou o número de soldados em campo. Cerca de 10 mil dos 40 mil soldados estão divididos entre oito grupos de batalha. Esses grupos de batalha são equipados com diferentes unidades voltadas para as necessidades militares do local em conflito. Cada grupo de batalha é liderado por um país diferente, que fornece a maior parte das tropas.

Manter tropas mobilizadas custa muito dinheiro. E a aliança continua excessivamente dependente dos EUA

Embora muitos aliados tenham trazido ativos benéficos, a contribuição dos Estados Unidos supera, porém, aquela de todos os países europeus juntos. Se não fosse o fato de que as tropas dos EUA na Europa hoje somam 100 mil homens – o maior número desde meados da década de 1990 –, é duvidoso que a aliança pudesse apresentar uma frente tão unida.

As promessas recentes de aumentar os gastos com defesa também foram impressionantes. Mas, ao menos no momento, apenas nove dos 30 signatários dedicam 2% de seu PIB à defesa, e entre os que não atingem esse limite estão grandes países europeus, como França, Alemanha, Itália e Espanha. O resto, como dizem, continua “obra em andamento”. A Otan calcula que seus integrantes prometeram gastar 172,6 bilhões de libras (cerca de 1 trilhão de reais) em despesas de defesa adicionais, além dos orçamentos existentes. Mas a questão é como isso será gasto e em que período. A maneira mais fácil de melhorar as capacidades europeias seria usar o dinheiro para comprar equipamentos à venda pelos Estados Unidos, o que oferece economias substanciais de escala e tempo. Mas tal abordagem vai contra as aspirações europeias de impulsionar suas indústrias de defesa. Diplomatas franceses alertam que a guerra na Ucrânia não deve acabar como uma bonança para os fabricantes de armas norte-americanos. Há grande ­probabilidade de que o eterno debate sobre “divisão de encargos” na Otan continue, mesmo que haja mais dinheiro disponível.

Do outro lado do Atlântico, Donald Trump e seus discípulos estão prontos para argumentar – como fazia “o ­Donald” quando estava na Casa Branca – que a Otan é uma farsa para espoliar os contribuintes norte-americanos. Mesmo que ele não encene um retorno, a ideia de que os Estados Unidos gastam muito mais do que deveriam para defender os europeus gordos e ricos provavelmente terá destaque quando um novo Congresso for eleito, em novembro. A pura audácia da agressão russa permitiu que o governo Biden obtivesse o dinheiro necessário do Congresso. Ainda assim, é dado como certo em Washington que o pacote de 40 bilhões de dólares recém-aprovado pelo Congresso para assistência de segurança à Ucrânia dificilmente será repetido. E um futuro debate sobre a divisão de encargos da Otan tende a ficar mais amargo quando se junta a uma discussão paralela sobre o pagamento pela reconstrução econômica da Ucrânia no pós-guerra, projeto avaliado em lamentáveis 500 bilhões de dólares.

A Otan também estabeleceu um grande objetivo ao se comprometer a aumentar o número de forças de alta prontidão para mais de 300 mil. Pois isso ainda não responde à pergunta fundamental de saber se, para impedir mais agressões de Putin, a aliança deve posicionar permanentemente forças significativas nos países próximos à Rússia. Não fazer isso poderia expor os membros ao perigo de uma ocupação russa por ao menos um período até que chegue ajuda para libertá-los, risco que, dados os horrores de Bucha, nenhum país da aliança está disposto a contemplar. Mas manter as tropas multinacionais implantadas permanentemente na Europa Central e Oriental será extremamente caro, muito além dos atuais planos de gastos expandidos.

Todos concordam que não se deve permitir que a Rússia tenha sucesso em sua atual agressão. Mas isso significa que deve ser derrotada fisicamente no campo de batalha na Ucrânia, como argumentam a Grã-Bretanha e a maioria dos europeus centrais e orientais, ou bastaria que a guerra terminasse sem que Moscou possa reivindicar a vitória de modo plausível, como prefeririam os líderes alemães? Por enquanto, esse debate parece abstrato. Mas, no momento em que Moscou sugerir um cessar-fogo na Ucrânia, todas essas opiniões divergentes na Otan virão à tona. O novo Conceito Estratégico da aliança adotado em Madri inclui um total de 71 compromissos categóricos, distribuídos em apenas 11 páginas de texto. Um admirável conjunto de promessas, sem dúvida. Mas algumas não resistirão quando as armas na Ucrânia silenciarem. •


*Jonathan Eyal é diretor associado do Royal United Services Institute, em Londres.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Palavras e ação”

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