Diversidade
Over the rainbow
Uma cascata de leis estaduais limita os direitos da comunidade LGBTQ+, em meio ao crescente discurso de ódio


Quando a Suprema Corte anulou a Roe v. Wade em junho do ano passado e pôs fim à garantia constitucional de décadas ao direito ao aborto, um sinal de alerta piscou em Washington. Qualquer legislador minimamente liberal e atento sabia que o próximo alvo de um tribunal ultraconservador seria a comunidade LGBTQ+. Em uma corrida contra o tempo, o presidente Joe Biden conseguiu assinar, seis meses depois da decisão do tribunal a respeito do aborto, a legislação que garante casamentos inter-raciais e entre pessoas do mesmo sexo em todos os estados do país. “Esta lei e o amor que ela defende desferem um golpe contra o ódio em todas as suas formas”, discursou Biden no dia da assinatura. “Por isso, esta lei é importante para todos os americanos, não importa quem você seja ou quem você ame. Durante a maior parte da história de nossa nação, negamos proteção a casais inter-raciais e casais do mesmo sexo. Falhamos. Falhamos em tratá-los com igual dignidade e respeito.”
Apesar das garantias, o enfraquecimento dos defensores da diversidade assusta. Movimento político e social, o grupo LGBTQ+ tem atualmente no Congresso dos Estados Unidos apenas 13 representantes – 11 deputados entre as 435 cadeiras na Câmara, e dois senadores entre cem. A maioria esmagadora, 11 ao todo, integra o Partido Democrata. Além deles, há uma senadora que deixou a legenda no fim de 2022 e tornou-se independente. Somente um representante assumidamente gay integra o Partido Republicano, mas seu currículo desabona a comunidade: o brasileiro George Santos é acusado de 13 crimes federais, entre eles fraude eletrônica, lavagem de dinheiro, desvio de fundos públicos e falsidade ideológica.
Empresas que apoiam a diversidade também se tornaram alvo de boicotes
Não bastasse a pouca representatividade na política institucional, especialmente se considerarmos o histórico (33 parlamentares LGBTQ+ em toda a história), o cerco à comunidade aumentou nos últimos anos. Mais de cem projetos de lei contra transgêneros foram apresentados nas legislaturas estaduais desde 2020. Entre as lideranças homofóbicas figura Ron DeSantis, governador republicano da Flórida e pré-candidato à Presidência em 2024.
Sob sua administração, DeSantis fez do estado que governa um laboratório de preconceitos e bizarrices. Nos primeiros seis meses deste ano, foram aprovados mais projetos de lei conservadores do que nos últimos 22 anos. Na Flórida, as escolas do ensino fundamental passaram a ser proibidas de discutir orientação sexual e identidade de gênero. DeSantis assinou ainda projetos de lei que proíbem a entrada de trans em banheiros femininos e vetam cuidados médicos e psicológicos a menores em transição de gênero. E entrou em guerra com a Disneylândia e o apoio do parque às minorias. A cruzada não acabou. O próximo alvo do governador, que pretende conquistar os radicais apoiadores de Trump, são as performances de drag queens no estado. Não por acaso, a Flórida registra o segundo tiroteio em massa mais fatal dos EUA. Em 2016, um homem de 29 anos matou 49 frequentadores e feriu outros 53 em uma boate gay.
O ativista Paul Nocera, um dos organizadores do Reclaim Pride Coalition, movimento LGBTQ+, define o atual momento: “Não podemos achar que as coisas estão melhores por causa de uma lei, até porque a Suprema Corte pode criar uma regra em outra direção. Assim perdemos os nossos direitos. E assim acabamos mais revoltados de um ano para o outro. Donald Trump só começou a crescer quando foi realmente eleito e, veja bem, 70 milhões de eleitores votaram nele. Isso foi uma espécie de choque para o resto da América, mas talvez não deveria ter sido porque esses eleitores sempre estiveram aqui. Esses 70 milhões não encerraram seu mandato e foram embora. Eles permanecem. Então, Donald Trump será eleito novamente? Não acho, mas os 70 milhões que votariam nele ainda estão por aí”.
Reação. Grupos conservadores pressionam parlamentares a impor restrições estaduais a LGBTs, em uma espécie de neomacarthismo de gênero – Imagem: Artur Widak/NurPhoto/AFP
Para Nocera, portanto, não é com Trump que a democracia deve se preocupar, mas com a atitude basilar de uma sociedade profundamente racista, xenófoba, sexista, homofóbica e autoritária. “Quando o Texas e a Flórida começam a aprovar leis contra os pontos do ensino nas escolas secundárias e emburrecem os estudantes, o que eles querem, na prática, é uma população que saiba concluir um trabalho, mas sem senso crítico. Eles querem uma população com habilidades limitadas, com educação limitada, virando hambúrgueres, alugando empregos e isso os exclui da propriedade, isso tira deles a possibilidade de aumento financeiro, é isso que cerceia seus direitos porque, quando você limita a educação de um povo, você limita a capacidade do povo de se levantar, e eles sabem disso.”
Como sabem também instigar o levante de manadas, especialmente quando os ataques têm como alvo as minorias. No mês de junho, a violência dirigida à comunidade LGBTQ+ acentuou-se às vésperas do chamado “Mês do Orgulho” nos Estados Unidos. A Target, varejista norte-americana, informou em comunicado enviado aos meios de comunicação que decidira remover produtos comemorativos do “Mês do Orgulho” depois de a empresa e seus funcionários se tornarem o foco de uma campanha anti-LGBTQ “volátil”. “Por mais de uma década, a Target oferece uma variedade de produtos destinados a celebrar o Pride Month. Desde o lançamento da coleção deste ano, enfrentamos ameaças que afetaram a sensação de segurança e bem-estar dos integrantes de nossa equipe durante o trabalho. Dadas essas circunstâncias voláteis, estamos fazendo ajustes em nossos planos, incluindo a remoção de itens que estiveram no centro do comportamento de confronto mais significativo. Nosso foco agora é seguir em frente com o nosso compromisso contínuo com a comunidade LGBTQIA+ e apoiá-la na celebração do Mês do Orgulho e ao longo do ano”, diz a nota.
Mais de 40% dos jovens LGBTQ+ entre 13 e 24 anos pensam em suicídio, aponta uma pesquisa
Meses antes, em abril, uma campanha da influenciadora transgênero Dylan Mulvaney para a Bud Light, marca de cerveja da Anheuser-Busch, transformou-se no mais completo fiasco e caos. Enquanto a marca, então queridinha no país, despencava da primeira para a 14ª posição após a parceria com a tiktoker, o CEO da empresa, Brendan Whitworth, tentava apagar o incêndio em uma nota oficial intitulada “Nossa responsabilidade com a América”. No texto, Whitworth afirmou que a Bud Light nunca pretendeu fazer parte de uma discussão que divide os cidadãos. “Nosso negócio é reunir as pessoas para tomar uma cerveja. Meu tempo servindo neste país me ensinou a importância da responsabilidade e os valores sobre os quais a América foi fundada: liberdade, trabalho duro e respeito mútuo.” O texto capenga só fez piorar o cancelamento nas redes e, claro, nas prateleiras: as vendas da Bud Light caíram 28,5% antes de 4 de julho e, até o fechamento desta edição, a empresa havia perdido mais de 20 bilhões em valor de mercado.
A influenciadora permaneceu em silêncio por meses, até 29 de junho, quando decidiu se posicionar pela primeira vez sobre o assunto. Em um vídeo publicado nas redes sociais, Mulvaney disse temer sair de casa e sentir uma solidão que não desejaria a ninguém. Desde o comercial para a cerveja, conta a influencer, ela sofreu “mais bullying e transfobia do que jamais poderia imaginar”. E acrescentou: “Estava esperando que a marca entrasse em contato comigo, mas eles nunca o fizeram. Para uma empresa contratar uma pessoa trans e depois não a apoiar publicamente é pior do que não contratar uma pessoa trans”.
Oportunista. DeSantis, pré-candidato à Presidência, explora a homofobia – Imagem: Gage Skidmore
A pesquisa Nacional do Trevor Project sobre a saúde mental de jovens LGBTQ+ entre 13 e 24 anos traz dados alarmantes: 41% consideraram seriamente a tentativa de suicídio no ano passado. Outros 56% em busca de atendimento de saúde mental não conseguiram. Além disso, 67% relataram sintomas de ansiedade e 54%, de depressão. Outros 27% transgêneros e não binários relataram ameaças físicas ou discriminação por conta de sua identidade.
Atento aos problemas, em 2019 a RPC decidiu criar a Queer Liberation March. A data vai além da celebração do 50º aniversário dos protestos de Stonewall, marco do movimento LGBTQ+ nos Estados Unidos. O propósito era realçar os princípios originários das manifestações de 28 de junho de 1969 e promover movimentos contra a comercialização de eventos da comunidade. Desde então, há cinco anos, a Queer Liberation March acontece simultaneamente à Parada do Orgulho de Nova York, generosamente financiada pelos principais bancos, gigantes do mercado varejista e até pela polícia da cidade. “Especialmente em 2019, nos 50 anos do Stonewall, senti que a nossa alma era vendida para o maior lance. Então, o espírito original e o legado de Stonewall precisaram sair da calçada e ir para a rua. A marcha, aliás, sempre foi sobre resistência e resiliência”, afirma Nocera. Resistência, na verdade, talvez seja a palavra certa para significar o movimento LGBTQ+. •
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Over the rainbow’
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