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Otan completa 70 anos em crise e sem saber qual seu papel no mundo

O fim da organização foi previsto muitas vezes, desde que seu principal objetivo, dissuadir a União Soviética, desapareceu

Foto: Artur Widak/Nurphoto/AFP
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Parece mais uma festa de aniversário no Inferno. Os alemães e europeus do Leste estão zangados com os franceses. Os franceses estão zangados com os turcos e os americanos. Donald Trump está bravo com quase todo mundo. E os anfitriões britânicos gostariam que tudo acabasse logo.

Bem-vindo às comemorações dos 70 anos da Organização do Tratado do Atlântico Norte. O encontro deveria marcar as conquistas no Pós-Guerra do que os fãs gostam de chamar de “a aliança de defesa mais bem-sucedida do mundo”. Em vez disso, assemelha-se a um episódio particularmente neurótico de EastEnders, com os atores principais levados ao ponto de ruptura por disputas familiares, comentários maldosos e traições pessoais. E, no coração dessa novela melodramática, um dilema existencial: de que serve tudo isso? A programação muito modesta da reunião conta sua própria história. Líderes dos 29 Estados membros se encontrarão em um hotel elegante perto de Watford, não em Londres. Esta é a maneira astuta de Boris Johnson frustrar os manifestantes anti-Trump.

Não haverá um grande banquete de boas-vindas. Em vez disso, os líderes poderão receber um copo de prosecco e palitos de queijo com abacaxi numa recepção anterior no Palácio de Buckingham. Após uma “sessão de trabalho” matinal, há tempo livre para encontros “bilaterais”, o que significa mais discussões. Foi até sugerida uma visita dos líderes ao estúdio de cinema The Making of Harry Potter, nas proximidades. Para aqueles que acreditam que a união da Otan é uma fantasia mágica recomenda-se o especial natalino Hogwarts sob a Neve.

O fim da Otan foi previsto muitas vezes, desde que seu principal objetivo, dissuadir a União Soviética, desapareceu. Seu fracasso em aceitar uma nova missão ou, melhor, escolher entre versões concorrentes de qual deve ser essa missão, corre o risco de levá-la à irrelevância. Sugestões recentes do presidente da França, Emmanuel Macron, exasperado, de que a Otan está “estrategicamente com morte cerebral” e precisa desesperadamente de novas ideias, foram uma tentativa de agitar as coisas. Ele ficou furioso por Trump não ter consultado com antecedência sobre a retirada das forças americanas do nordeste da Síria e a subsequente invasão pela Turquia, da qual ele soube pelo Twitter.

Macron insiste que a Otan deve se concentrar urgentemente em seu objetivo geral e metas específicas, e não na obsessão de Trump por quem paga as contas. “As perguntas que eu fiz (…) ainda não resolvemos”, disse ele. “Paz na Europa, a situação pós-INF, o tratado sobre forças nucleares de alcance intermediário, descartado por Trump, o relacionamento com a Rússia, com a questão da Turquia, quem é o inimigo?” O francês pediu à Otan que encontrasse um terreno comum com Vladimir Putin e não tratasse Moscou como inimiga. O terrorismo, disse ele, é a maior ameaça que todos enfrentam. Ele também sugeriu mais atenção ao flanco Sul da Europa, o que significa o Norte da África e o Sahel, além da Síria-Iraque.

As intervenções provocativas de Ma-cron foram recebidas por uma onda de complacência misturada com irritação. As autoridades britânicas sugeriram que ele cortejava o público doméstico. Angela Merkel, a sempre cautelosa chanceler da Alemanha, acusou-o de se entregar a “políticas disruptivas” infantis e disse que estava “cansada de recolher as peças” depois. O líder francês também é suspeito de promover sua visão da União Europeia como uma grande potência global, capaz de enfrentar a China, os EUA e a Rússia, à custa da Otan. Ele quer uma expansão das capacidades militares europeias e uma base industrial de defesa mais forte.

Os alemães e os europeus do Leste temem que essas ideias possam prejudicar a Otan. Berlim suspeita que acabaria por pagar pelos sonhos parisienses. O encontro dos ministros das Relações Exteriores da Otan optou pela habitual mensagem de “firmes enquanto ela afunda”. Merkel, nesse ínterim, disse ao Parlamento que estruturas de defesa da UE mais bem desenvolvidas devem complementar, e não substituir, a Otan. E rejeitou categoricamente a alegação de Macron de que os EUA não são mais um parceiro confiável. “A preservação da Otan é do nosso interesse fundamental, mais ainda do que durante a Guerra Fria. Por enquanto, a Europa não pode se defender sozinha, confiamos nessa aliança transatlântica”, afirmou.

Segundo Macron, a aliança sofre de “morte cerebral”. Trump quer gastar menos dinheiro

Trump, que não é fã da Otan, possivelmente vai tratar essa admissão de dependência alemã como fraqueza e tentará explorar as brechas da aliança. Sua contribuição pré-Watford foi anunciar um grande corte na verba dos EUA para o orçamento operacional da aliança.

O presidente americano não tem nada de positivo para oferecer ao debate estratégico. Ansioso por parecer durão à medida que as eleições em seu país se aproximam, ele parece determinado a ignorar o que o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, chama de progresso significativo na divisão de encargos.

Diplomatas atentos à desastrosa cúpula de Bruxelas no ano passado temem que Trump possa recorrer mais uma vez ao abuso, sua marca registrada. Outra grande mina terrestre aguarda na zona rural de Hertfordshire: o comportamento independente da Turquia. Sua invasão na Síria, visando curdos pró-ocidentais e arriscando ganhos obtidos na batalha contra o Estado Islâmico, chocou os integrantes da Otan em toda a Europa, incentivando os apelos à expulsão da Turquia.

A ação de Recep Tayyip Erdogan, agindo em conjunto com Trump, deu uma vitória estratégica à Rússia e ao regime sírio. As críticas de Macron levaram a Turquia a condená-lo como “patrocinador do terrorismo”.

Tão explosiva é essa disputa Turquia-Europa, complicada pelas ameaças de Erdogan de inundar a UE com refugiados sírios, as violações dos direitos humanos dentro da “zona segura” síria ocupada pelos turcos e uma briga por Chipre, que está planejada uma reunião separada entre Erdogan, Macron e Merkel, hospedada por Johnson. Talvez eles remendem as coisas. Mas as questões maiores colocadas por Macron permanecem sem resposta. Ele está certo sobre a necessidade de mudar ou perecer? Talvez a Otan não seja mais adequada a seu propósito? Com certeza ele se fará ouvir. Poderá ser um dia difícil em Watford.

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