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Os sacrifícios impostos à população por Pequim para esmagar o vírus

Na China, as autoridades decidiram dobrar a aposta em sua política de ‘Covid zero’: tentar eliminar a doença onde quer que ela surja

Os sacrifícios impostos à população por Pequim para esmagar o vírus
Os sacrifícios impostos à população por Pequim para esmagar o vírus
Vigilância total. A China aposta nos testes em massa, na vacinação de crianças e em severos lockdowns. Até agora tem funcionado
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Moradores desesperados da cidade de Xi’an, no oeste da China, estão sem comida depois que foram impedidos de comprar alimentos, num feroz lockdown. Na província de Guangxi, no sul do país, habitantes que infringiram as leis da ­Covid-19 foram recentemente expostos ao escárnio público em desfiles pelas ruas em macacões de “material perigoso” com placas penduradas nos pescoços. O resto do mundo tem aprendido, devagar e com certa dificuldade, a conviver com a pandemia, mas na China as autoridades decidiram dobrar a aposta em sua política de “Covid zero”: tentar eliminar a doença onde quer que ela surja, a qualquer custo. Um único caso em uma cidade de fronteira levou 200 mil chineses a serem postos em quarentena no fim do mês passado.

Um aspecto-chave da política é o fechamento das fronteiras. Mas, em 2022, Pequim segue um caminho cada vez mais solitário.

Uma combinação de vacinação em massa, pressão social e novas variantes altamente transmissíveis convenceu outros países da linha “Covid zero” – Austrália, Nova Zelândia e Cingapura – a se reabrirem lentamente para o mundo. Na China, alguns importantes cientistas e autoridades também assumiram o risco político de pedir uma reabertura semelhante, reconhecendo que parece que a Covid se tornará endêmica no mundo. Gao Fu, chefe do Centro de Controle e Prevenção de ­Doenças, sugeriu recentemente que o país estará pronto quando a taxa de vacinação passar de 85%, talvez no início de 2022.

Outros se uniram a cientistas do exterior, advertindo que até os poderes autocráticos de Pequim e o apoio popular a lockdowns e outras medidas de controle talvez não sejam suficientes para manter fora as novas variantes altamente transmissíveis.

A ordem é tentar eliminar a doença onde quer que ela surja, a qualquer custo

“A China terá grande dificuldade com a Ômicron e uma política de Covid zero”, disse no Twitter Tulio Oliveira, diretor do Centro para Resposta Epidêmica e Inovação da África do Sul. Ele faz parte da equipe que primeiro alertou a Organização Mundial da Saúde para a nova variante. “Eles poderão ter de se unir ao resto do mundo com estratégias de mitigação. A China não deve punir suas autoridades de saúde pública ou seus cidadãos ou estrangeiros por causa de uma variante mais transmissível.”

Seja qual for o preço, a China provavelmente fará grande pressão para manter o vírus sob controle durante a maior parte deste ano, antes de dois acontecimentos de perfil destacado e grande importância. No mês que vem, Pequim sediará as Olimpíadas de Inverno, encontro prejudicado por boicotes diplomáticos, devido a abusos aos direitos humanos. No outono, a liderança comunista se reunirá no 20º Congresso do partido, que deverá prorrogar oficialmente o poder de Xi Jinping por mais cinco anos.

As autoridades de Pequim terão pouco apetite por colocar sob ameaça as Olimpía­das ou o Congresso do partido com um surto de Covid, que representaria um teste descontrolado da eficácia da vacinação e dos preparativos médicos no país. Os riscos para a saúde de abrir a China ao vírus provavelmente serão maiores do que em países que abandonaram suas políticas de Covid zero, disse Sean Yuji Sylvia, professor-assistente na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, nos EUA, cuja pesquisa se concentra em economia da saúde e o sistema de saúde da China.

“Há vários motivos pelos quais faz sentido para Pequim manter controles rígidos por enquanto”, disse Sylvia. “A China tem uma alta densidade populacional e menor imunidade de rebanho na população, devido à exposição limitada ao vírus e vacinas menos eficazes. O sistema de saúde também é relativamente fraco na maior parte do país e poderia facilmente ser sobrecarregado. E mesmo que as vacinas ofereçam boa proteção contra casos graves, os pacientes com doença menos severa têm maior probabilidade de ser hospitalizados na China.”

Os hospitais do país também são equipados com médicos que têm pouca experiência clínica no tratamento de Covid, enquanto os profissionais de outros lugares têm dois anos de compreensão duramente conquistada de seu desenvolvimento e como melhor controlá-la. O possível custo humano da abertura também tem uma dimensão política. O governo e a mídia estatal aproveitaram o modo como o vírus se espalhou em outros países como evidência de fraca liderança e má tomada de decisões.

Imagem. Impedir um grande surto durante as Olimpíadas de Inverno é a maior preocupação do governo chinês

Abandonar a Covid zero poderia provocar uma crise em hospitais e no sistema de saúde que abriria o governo chinês a críticas semelhantes. As primeiras semanas da pandemia, quando os hospitais em Wuhan ficaram lotados e o número de mortes incluiu muitos profissionais de medicina, alimentaram a fúria e o medo em todas as regiões. “A política de Covid zero da China é dirigida principalmente por preocupações de estabilidade social. O regime vê a Covid, a Sars e outras epidemias ou pandemias como uma crise de saúde que tem o potencial de evoluir para uma crise social”, disse Lynette Ong, professora associada de Ciência Política na Universidade de Toronto, no Canadá. “Com isso em mente, não é difícil entender por que eles estão dispostos a defendê-la a todo custo. Mas os custos são altos. Enquanto o resto do mundo aprende a conviver com ela, a China se verá sozinha, com poucos mecanismos de enfrentamento.”

Um sinal-chave a se observar, acrescenta ela, é se a abordagem da Covid mudará depois que a liderança tomar decisões no Congresso do Partido Comunista. Controles rígidos foram surpreendentemente eficazes até agora. Nas últimas quatro semanas, quando a China combatia um núcleo relativamente grande de infecções pelos padrões domésticos, as autoridades detectaram 3,4 mil casos, e ninguém morreu. No mesmo período, mais de 5,7 milhões de indivíduos se infectaram com Covid nos Estados Unidos e 36 mil morreram da doença. E enquanto outras economias desmoronavam sob a pressão das mortes e os lockdowns, a China manteve o crescimento. Se o seu caminho continuar divergindo do resto do mundo, entretanto, os custos e os desafios da abordagem ­Covid zero quase certamente aumentarão.

Pequim teme que uma crise sanitária provoque distúrbios sociais e políticos

Em 2020 e 2021, quando a China conteve seu surto inicial, os gastos domésticos rapidamente se aceleraram. Suas fábricas continuaram a entregar produtos para o mundo, adicionando testes para Covid e outros itens médicos à sua linha de produção, para uma pandemia que parecia contornar o país. Agora, o cálculo econômico tornou-se, porém, mais complexo. Um novo lockdown estrito e novas regras de quarentena estão afetando tudo, das cadeias de suprimentos globais, quando os marinheiros que querem voltar para casa têm de passar semanas em isolamento, à produção industrial.

Parceiros comerciais estão irritados com o impacto dos novos controles de fronteira impostos subitamente, com mais de 6 mil caminhões vietnamitas parados em uma fronteira no fim de ­dezembro. Se outros mercados continuarem a facilitar os controles de movimento ligados à Covid enquanto a China mantiver o fechamento, eles poderão ser obrigados a procurar outros parceiros comerciais.

Se Pequim continuar isolada do mundo, também poderá diminuir seus esforços para projetar sua influência mundial. Esta tem sido uma característica destacada do regime cada vez mais assertivo de Xi Jinping, incluindo sua iniciativa principal, a do “Cinturão e Estrada”, que oferece investimento e ajuda a todo o mundo.

Mas por enquanto as autoridades claramente deram prioridade às vantagens políticas de uma China sem Covid, e estão dispostas a pagar um alto preço para manter essa posição incomum em um mundo onde a doença se torna endêmica. “A estratégia de ‘liberação dinâmica’ da China até agora se mostrou eficaz para limitar a disseminação interna da ­doença, embora com custo significativo, e recompensas”, disse Thomas Hale, professor-associado de políticas públicas na Escola de Governança Blavatnik da Universidade de Oxford. “As declarações do governo desde o surgimento da Ômicron, que consideraram a atual estratégia um sucesso, sugerem que o ponto de transição (afastando-se da Covid zero) não está próximo, apesar de certa discussão do assunto na mídia chinesa. Além disso, quando a transição vier, talvez não seja fácil, porque a sociedade chinesa habituou-se a um baixo nível de transmissão.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1190 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS DA PÁGINA: ZHANG TAO/XINHUA/AFP E PENG YUAN/XINHUA/AFP – ISTOCKPHOTO E BOC/BEIJING 2022

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