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Os rostos da crise

Na Espanha, famílias despejadas em meio à crise se unem para ocupar edifícios vazios

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Teresa seca as mãos no avental branco para me cumprimentar como pede o protocolo. Vem com o rosto suado, os cabelos desarrumados, a voz cansada. Avisa prontamente: “Não tenho muito tempo. Hoje vêm umas pessoas aqui para deixar alguns brinquedos, móveis, roupas… Então só posso falar com você até o pessoal chegar”. Pede desculpas mais de uma vez. Enquanto conversamos, na porta do edifício, à espera das doações, ela cumprimenta os vizinhos, toma conta dos filhos e controla a comida. Faz tudo ao mesmo tempo. Sua luta, hoje, é pela moradia.

A história de Teresa Hernández é uma entre tantas. Ela pagava regularmente as parcelas do seu futuro-novo-apartamento no bairro Torreblanca, em Sevilha, quando ficou desempregada. Tinha 35 anos e três filhos. Com a possibilidade de ser despejada, se uniu a outras quatro famílias que também não tinham onde viver e ocuparam um edifício vazio no bairro Nervión. Assim começou a Corrala Esperanza, no dia 21 de dezembro de 2012. Foi a quinta ocupação ocorrida em Sevilha, cidade que hoje, conta com dez edifícios transformados em corralas. O movimento ganha força com o número cada vez maior de expulsões e com a comoção popular gerada por esse tipo de ação: quanto mais prédios ocupados, mais pessoas se inteiram do problema, mais fortes são as relações entre os vizinhos e mais numerosos são os rostos que personificam a crise vivida na cidade.

Dinâmica da expulsão. Carmen Román perdeu seu emprego em setembro do ano passado. Sem nenhum outra fonte de recurso, teve de parar de pagar a hipoteca. Meses depois, foi desalojada. “Quem me vê na rua não consegue nem imaginar tudo que passei. Muita gente pensa que somos mal encarados, mas as famílias que vivem nas corralas são famílias normais. Tudo o que queremos é ter um teto para viver e criar os nossos filhos. Na verdade, não fazemos nada mais que reclamar nosso direito a uma casa.” As palavras daquela simpática mulher eram simples e diretas. Por vezes, felizes. Ainda que ela compreendesse a situação das famílias que sofrem com o problema da moradia, Carmen não podia esconder o sorriso ao falar do pacto feito com os proprietários do imóvel que ocuparam, no bairro de Triana, onde está a Corrala Libertad. “Depois de dois meses de luta chegamos a um acordo no qual cada família pagará um aluguel em função da sua renda.”

Libertad foi a sexta corrala criada em Sevilha. Ao todo foram doze ocupações na cidade, duas delas desmanchadas poucos meses depois da sua criação. A primeira foi a Corrala Utopia, quando “um grupo de famílias afetadas pela crise se uniu e resolveu ocupar um edifício no bairro de Macarena, no dia 1º de maio de 2012”, explica o jornalista Juanjo García, ativista que forma parte da equipe de comunicação da Utopia. Foi a partir dessa data que outras famílias começaram a pensar a ocupação de edifícios vazios.

A verdade é que o país vive hoje um grande paradoxo. Segundo a Plataforma de Afetados pela Hipoteca, desde o começo da crise, em julho de 2008, já foram desalojadas mais de 170 mil famílias. A plataforma é uma associação formada por pessoas solidárias às questões de quem está perdendo sua casa por causa da crise, desde aqueles que não consegue pagar as parcelas do seu imóvel até os que já foram despejados. E mais: segundo o Instituto Nacional de Estatística da Espanha, o número de moradias vazias no território nacional ultrapassa os três milhões e meio. “O movimento pôs as contradições do sistema sobre a mesa”, afirma Juanjo, que não se diz comunista, mas que acredita que o sistema capitalista, da maneira como é concebido hoje, está com os dias contados. “As questões trazidas pelas corralas ajudaram a mostrar os danos causados pela especulação imobiliária e pelas estratégias dos bancos e das grandes empresas de imóveis.”

Se esses são alguns dos vilões da crise, o outro é a lei. A Constituição Espanhola assegura que “todos os espanhóis tem direito a desfrutar de uma moradia digna e adequada”. Como isso não funciona na vida real, outras leis tiveram que ser criadas. A nível estatal, a família que não paga a sua hipoteca por dois meses pode ser desalojada e o nome dos devedores vai para uma lista, o que piora a situação no momentos em que eles tenham que fazer algum acordo futuro ou mesmo solicitar um empréstimo. A nível regional, a situação ficou um pouco melhor a partir da aprovação do Decreto Lei do dia 9 de abril de 2013, que assegura o Cumprimento da Função Social da Moradia. Nele, a Junta da Andaluzia (órgão responsável pelas questões da Província de Andaluzia, que tem Sevilha como capital) estabelece novas ajudas aos proprietários que sofrem com o não pagamento do inquilino, sanções às empresas imobiliárias que mantém moradias vazias e, inclusive, a expropriação de imóveis para evitar que famílias sejam desalojadas.

Ainda que as coisas tenham mudado, o Decreto necessita de modificações. Principalmente pelo fato de que ele não busca uma solução urgente para as famílias já desalojadas. O que resta é seguir lutando. “Eu não sou alheio a tudo isso. Ninguém é. Por isso devemos participar. Depois que comecei a atuar no movimento criei uma relação de amizade com muitas das famílias e ainda que esse seja um tema duro, há muito potencial”, afirma Juanjo. Enquanto tomávamos uma Coca-Cola no bar ao lado da sua casa, ele olhava o relógio. Todos os dias, as duas da tarde, ele vai à Biblioteca Municipal de Umbrete, onde trabalha. Apesar das suas mil atividades diárias, Juanjo separou um tempo para me atender. E mesmo atrasado, parecia tranquilo. Sua doação à Corrala Utopia é total, mesmo consciente de que, a nível prático, não ganha nada. Na verdade, perde: “Tempo”. Sorri. “Não escolhi nascer nessa época, uma época de muita injustiça, mas estou trabalhando por ela e minha satisfação é ver como isso está provocando mudanças.”

Na Corrala Utopia a mudança é significativa. As trinta e seis famílias que chegaram ali buscando apoio, hoje, são um grupo unido. “O interessante é perceber a mudança de discurso. Entre os momentos mais importantes do meu dia a dia estão aqueles em que eu me sento com uma pessoa e vejo que ela já não luta só por ela, mas por todos”, diz Juanjo, contente. A luta da Corrala Utopia, entretanto, continua sendo uma das mais complicadas.

A busca por uma utopia. Ni casas sin gente, ni gente sin casas. O lema “nem casas sem pessoas, nem pessoas sem casa” que acompanha a luta das corralas de Sevilha para que cada família possa ter uma moradia digna, também brilhava em alguns dos cartazes que coloriam as ruas da cidade durante a manifestação do dia 16 de maio, a mais recente. O motivo para sair à rua naquele dia era nada menos que a possibilidade de despejo das trinta e seis famílias que vivem na Corrala Utopia. Depois de diversas fases de negociação com a Ibercaja (empresa que detém o poder sobre o edifício ocupado), a entidade anunciou que ia desalojar todos que viviam ali no início do mês de junho.

 

Na concentração daquele ato tinha de tudo: crianças, adultos e idosos. Residente, vizinhos, simpatizantes. Gente com bandeiras de partidos políticos ou cartazes pintados a mão. Os transeuntes paravam para ver o movimento e os vizinhos surgiam nas janelas e varandas para entender exatamente o que pronunciavam aqueles que estavam na rua. No nos mires, únete (não olhe, una-se) e De norte a sur, de este a oeste, la lucha sigue, cueste lo que cueste (de norte a sul, de leste a oeste, a luta segue, custe o que custar) eram algumas das canções que se escutavam desde a calçada. A curiosa Que Buenos son, que Buenos son, la polícia que nos lleva de excursión (que bons eles são, que bons eles são, a policia leva a gente de excursão) conseguiu arrancar algumas risadas dos que passavam.

Com uma pitada de sorte era possível compartilhar sabedoria no meio da manifestação. Foi assim que conheci Manuel, um senhor de 72 anos que não vivia em nenhuma ocupação, sequer em Sevilha. Marchava sozinho. Tinha saído da sua cidade para unir-se ao movimento que ele considerava objetivo e exemplar. “Eles não ocupam por ocupar. Querem pagar um aluguel social, ou seja, que todos possam residir em um imóvel público pagando uma quantia justa.” O aluguel social, é uma alternativa para as pessoas que não dispõe de meios econômicos suficientes para manter o aluguel de um imóvel. O preço. A ideia já funciona de maneira regular em alguns pontos do país, ainda que de maneira limitada.

Por ter sido a primeira, a Corrala Utopia é um símbolo de luta na cidade. Pouco depois de entrar no edifício, eles ficaram sem luz nem água. Uma pessoa que pediu para não ser identifica contou que quando os vizinhos tentaram encher a caixa d’água que fica em cima do edifício, alguém, subiu e tapou a caixa com cimento. “É uma vergonha. Eles não se conformam com que as famílias tenham de sair do edifício, como também querem humilha-las, fazendo com que sejam obrigadas a descer para pegar água, para todo mundo que passe por perto veja.” Nos dias de hoje, para poder tomar banho, lavar algo ou refrescar-se no calor de 45 graus do verão sevilhano, precisam buscar água em uma fonte, em frente ao imóvel. Muitas vezes também não há comida e as famílias têm que contar com o apoio de outras famílias e das doações dos vizinhos.

Utopia foi desalojada. A Junta de Andaluzia advertiu que considera o edifício como habitado e que se a Ibercaja despejar as famílias que vivem ali, vai multar a empresa no valor de 324 mil euros (9 mil euros para cada um dos 36 apartamentos). As famílias seguem com a luta, se reunindo semanalmente, fazendo manifestações quando necessário e convocando o apoio de diversas entidades e associações. A prefeitura foi solicitada para pronunciar-se sobre o tema, mas não se manifestou.

A Corrala Utopia ganhou. Dessa vez. A instabilidade na qual vivem os obriga a seguir buscando o apoio da população e do governo para ter a situação legalizada, assim como as outras famílias que batalham dia a dia para manter o seu espaço.

As dificuldades para manter-se de pé. Sem levar em conta as ocupações que já têm uma situação estável, como é o caso da Corrala Libertad, nenhum dos edifícios recebe luz ou água. As famílias também não têm direito a saúde ou educação, pois elas não têm uma residência oficial. Sem ela, não podem fazer o cadastramento municipal, registro dos moradores de uma cidade que dá direito a uma série de serviços públicos. “Não querem nos dar o direito a nada porque, legalmente, não temos uma moradia. Então quando uma família tenta ir a um hospital para receber tratamento ou a uma escola para matricular um filho, volta de mãos vazias”, explica Teresa Hernandez, moradora da Corrala Esperanza.

Enquanto conversávamos, uma jovem apareceu na porta. Era Irene, uma menina de 19 anos que vive na Corrala, com marido e filho. Irene contou que depois de descobrir a gravidez, buscou um apartamento para viver. Como nenhum dos dois tinha emprego, não tiveram outra saída que não fosse se unirem ao movimento. “Eu ainda não terminei meus estudos. Tive que parar por causa do meu filho e agora não tenho dinheiro para seguir. E também não tem emprego na cidade. Se as coisas melhorarem quero terminar e fazer Veterinária. Se não puder ser na faculdade, pelo menos um curso técnico”, disse.

Assim como Irene, seus vizinhos tentam manter a esperança. No mês de agosto eles finalmente conseguiram ser cadastrados, o que diminui parte dos problemas. Mas a verdade é que ninguém sabe o que vai acontecer. “Não há trabalho e quando há, se trabalha para pagar a dívida que o governo espanhol fez. As vezes eu perco um pouco minha fé… de que adiante trabalhar para dar dinheiro aos que já têm?”, pergunta Teresa, olhando fixamente nos meus olhos com a segurança de que nem eu nem ninguém tem uma resposta. A pergunta fica no ar.

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