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Os futuros czares
Na “Davos” russa, filhos dos líderes políticos e dos magnatas começam a dar as cartas


No principal fórum econômico de Vladimir Putin, apelidado de “Davos russo” e realizado anualmente na cidade natal do presidente, São Petersburgo, duas mulheres falaram longamente. Suas identidades eram um segredo aberto, mas ninguém ousava dizê-lo em voz alta: eram as filhas de Putin.
A mais velha, Maria Vorontsova, 39 anos, cientista especializada em investigação genética, presidiu uma discussão no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo sobre “Bioeconomia”. No mesmo dia, Katerina Tikhonova, 37 anos, executiva de tecnologia e dançarina de rock’n’roll acrobático, falou com orgulho sobre o papel da indústria de defesa para garantir a soberania tecnológica da Rússia.
As identidades das filhas de Putin de seu casamento com Lyudmila Putina, uma ex-comissária da Aeroflot de quem se divorciou em 2013, nunca foram confirmadas pelo Kremlin, e nenhuma fotografia delas adultas foi oficialmente divulgada. Apesar de sua influência crescente e de terem sido atingidas pelas sanções impostas pelo Ocidente, Putin nunca as reconheceu publicamente como filhas. Quando questionado a respeito, ele simplesmente se referiu a elas como “essas mulheres”.
Seus nomes também estavam claramente ausentes de uma árvore genealógica detalhada de Putin apresentada ao público no SPIEF 2024. A exposição, em um estande onde os convidados podiam tirar selfies, traçava a linhagem do presidente até o “Tempo das Perturbações”, no século XVII, revelando suas origens humildes numa família de agricultores. Mas o perfil público ascendente das duas mulheres indica uma tendência mais ampla: os filhos de Putin e de seus aliados cada vez mais assumem cargos em empresas e no governo, uma sugestão de que seus pais idosos trabalham para garantir uma transição estável de poder e influência.
Lá estava Ksenia Shoigu, filha do ex-ministro da Defesa e atual secretário do Conselho de Segurança, Sergei Shoigu, que presidiu uma discussão sobre a federação de triatlo do país, sob sua direção. Roman Rotenberg, um alto executivo do hóquei no gelo, cujo pai, Boris, foi um dos parceiros de judô de Putin na infância, também falou, manifestando-se um tanto ironicamente contra o que chamou de “nepotismo no esporte”.
Num relatório recente intitulado Politburo 2.0, uma homenagem ao sistema de governo da antiga União Soviética, Yevgeny Minchenko, cientista político próximo do Kremlin, descreveu esse processo como a “ascensão da princesa”. “Os filhos dos representantes da elite política alcançaram avanços profissionais há muito esperados”, escreveu.
Há sinais de um processo de transição de poder e influência
Neste ano, o fórum foi muito diferente do anterior à invasão da Ucrânia, em 2022, quando companhias multinacionais e russas disputaram parcerias dispendiosas ou realizaram festas de luxo com estrelas pop, entre elas Sting, para provar que estavam comprometidas com o mercado russo. Entre seus oradores, o SPIEF já ostentou líderes mundiais como o presidente francês, Emmanuel Macron, o líder chinês, Xi Jinping, e a ex-chanceler alemã Angela Merkel.
Para substituir as delegações ocidentais, a Rússia cortejou funcionários da América do Sul, África, Índia e China. O presidente Emmerson Mnangagwa, do Zimbábue, e o da Bolívia, Luis Arce, foram os convidados de honra deste ano. Uma delegação do Talebã também compareceu, apesar de a organização estar formalmente proibida na Rússia.
As discussões sobre o reforço da cooperação com o Ocidente pertencem agora ao passado, suplantadas por palestras de ativistas de extrema-direita, a começar pelo filósofo Alexander Dugin, que defendeu apaixonadamente a guerra total. Outras autoridades apelaram à eliminação do “movimento LGBT”.
À venda na conferência havia camisetas estampadas com uma frase combativa atribuída a Putin. “Se a luta for inevitável, dê o primeiro soco”, dizia, uma referência a um ditado que o presidente russo teria aprendido quando criança nas ruas de Leningrado.
Num sinal dos tempos, o agressivo cientista político russo Sergei Karaganov, que recentemente defendeu um ataque nuclear preventivo, foi escolhido para moderar a cerimônia de encerramento, tradicionalmente comandada por Putin. Ainda assim, alguns participantes afirmaram que o clima da reunião foi otimista, impulsionado pelas perspectivas econômicas positivas. Apesar da duvidosa distinção de ser o país mais fortemente punido por sanções mundiais, prevê-se que o PIB da Rússia cresça mais rapidamente do que o da maioria das outras economias avançadas, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, destacando a surpreendente resiliência do país e levantando questões sobre a eficácia das políticas de sanções.
As receitas do petróleo e do gás russos em abril quase duplicaram ano a ano, para 11 bilhões de libras (perto de 77 bilhões de reais), graças ao aumento dos preços, salientando as dificuldades que os países do Ocidente enfrentam enquanto procuram limitar as receitas do Kremlin e sufocar seu poderio militar. “Há um claro otimismo neste ano em comparação com 2023”, afirmou um dirigente de uma instituição financeira estatal, presente pela terceira vez no SPIEF. “Há um sentimento de orgulho no ar por termos derrotado o Ocidente na guerra econômica.”
Quando Putin, visivelmente confiante, fez seu discurso no plenário na sexta-feira 7, prometeu ao público a vitória na Ucrânia e elogiou o crescimento econômico do país. “Apesar de todos os obstáculos e sanções ilegítimas, a Rússia continua a ser um dos principais atores no comércio mundial”, festejou. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.
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