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Os estranhos encontros de Macri com juízes e jornalistas que investigavam Kirchner

Há uma coincidência de datas e atos. Os aliados da ex-presidenta veem provas de lawfare

Mauricio Macri. Foto: Joaquin Salgueiro/AFP
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Por Luciana Rosa, de Buenos Aires 

Neste início de abril, meios de comunicação argentinos revelaram que o então presidente Mauricio Macri recebeu diversas visitas de juízes, promotores e jornalistas na Quinta de Olivos durante seu mandato. Nenhuma surpresa, não fosse o fato de os registros dos encontros terem sido mantidos em segredo, ocultados dos relatórios de entrada e saída da residência oficial, segundo a ONG Poder Ciudadano, dedicada a fiscalizar os atos da administração pública. Os repórteres Ari Lijalad e Franco Mizrah tiveram acesso aos registros completos por meio dos boletins da Casa Militar, a partir da Lei de Acesso à Informação. Entre os interlocutores frequentes de Macri, apontam os documentos, aparece Mariano Borinsky, integrante da Câmara Federal de Cassação Penal, departamento responsável por conduzir a maioria dos processos contra a hoje vice-presidenta Cristina Kirchner. Ao todo, Macri e Borinsky se encontraram em 15 oportunidades, oficialmente para jogar tênis, futebol ou paddle

A agenda de Macri reforçou a suspeita de que Kirchner, como outros ex-presidentes da América do Sul, têm sido vítima de lawfare, o uso do Judiciário para perseguir adversários políticos, em especial lideranças progressistas. Segundo Juan Martín Mena, secretário de Justiça, cargo equivalente ao de ministro de Estado, “os acontecimentos são gravíssimos e vêm a comprovar uma feroz perseguição política utilizada, nem mais nem menos, pelo Poder Judiciário para levar a cabo causas que estavam armadas, onde o direito de defesa não estava garantido”. O site El Destape, um dos meios a revelar os encontros, ressalta: “Essas visitas coincidem com as datas de suas decisões em casos de alto impacto político, como a reabertura da denúncia do procurador Alberto Nisman, a midiática “Rota do dinheiro K”, o caso Dólar Futuro e o processo das Obras Públicas de Estradas Santa Cruz”.

As denúncias, diz Mena, serão investigadas criminalmente. “Os envolvidos terão de dar muitas explicações sobre o que estavam falando, qual era o conteúdo dessas reuniões”, afirma. “Os funcionários judiciais envolvidos cometeram crimes gravíssimos, que de forma alguma podem ser diminuídos ou justificados por uma relação social ou por dizerem que estavam apenas jogando uma partida de paddle”, critica Mena.

Além de Borinsky, Gustavo Hornos, outro integrante da Câmara de Cassação, o então procurador-geral Raúl Pleé e os jornalistas Joaquín Morales Solá e Carlos Pagni, do La Nación, e Ricardo Kirschbaum e Ricardo Roa, do Clarín, eram assíduos frequentadores da residência oficial. Os dois grupos de comunicação se tornaram inimigos figadais de Kirchner por causa da Ley de Medios, que limitou sua influência no mercado, e transformaram a cobertura dos escândalos de corrupção atribuídos à ex-mandatária em um massacre midiático. Héctor Magnetto, diretor do Clarín, esteve com Macri em 17 de julho de 2017, revelam os registros, mesmo dia em que o falecido juiz Claudio Bonadío ordenou a detenção de Victor Manzanares, ex-contador de Cristina Kirchner, em Rio Gallegos. No dia seguinte, o jornal estampava em sua manchete: “Contador dos Kirchner detido por tentar eludir embargo judicial de fundos”.

Mena faz questão de comparar os processos contra Kirchner à parcialidade de Sergio Moro e da força-tarefa da Lava Jato em relação ao ex-presidente Lula. “Existe uma matriz comum. Não tenho dúvidas de que se tratava de um plano regional que visava destruir, estigmatizar as lideranças nacionais e populares que governaram na última década e meia”, em referência aos governos progressistas latino-americanos. “Quando se analisam as circunstâncias do Brasil, com aquela promiscuidade também entre Moro e os setores políticos, que agora efetivamente se conheceram a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal, bem, o mesmo aconteceu aqui.” Moro, relembra o secretário, foi recebido na Argentina durante o governo Macri “pela mais alta autoridade judiciária do país, o Supremo Tribunal de Justiça, e tirou fotos ao lado de sua versão argentina, Claudio Bonadío”. 

Kirchner governou a Argentina por dois mandatos, entre 2007 e 2015. Em 2019, voltou ao poder como vice de Alberto Fernández, após o desastrado governo Macri, que aprofundou a crise econômica e social no país. A ex-presidenta enfrenta sete processos na Justiça. Alguns se tornaram folclóricos, entre eles os tais “cadernos da corrupção”, anotações de subornos supostamente feitas por um motorista particular de Roberto Baratta, ex-braço direito do ministro do Planejamento Julio De Vido. Em princípio, os oito cadernos teriam sido queimados, mas ao longo da investigação seis deles reapareceram milagrosamente. O motorista teria anotado presentes e propinas pagos por empresários a funcionários do governo Kirchner em troca de facilidades e contratos. O juiz Bonadío colheu duas delações premiadas. O empresário Angelo Calcaterra, primo de Macri, admitiu ter dado regalos a servidores públicos no período de 2003 a 2015. Fabián Gutiérrez, ex-secretário particular de Cristina Kirchner até 2010, também fez um acordo com a Justiça, mas em julho do ano passado acabou morto durante um assalto em sua casa em El Calafate, no sul do país. Bonadío chegou a pedir a prisão preventiva da ex-presidenta, mas o foro privilegiado da então senadora lhe garantiu a liberdade. O processo continua em tramitação. 

O Moro argentino aproveitou a oportunidade para reabrir o caso do atentado contra um centro comunitário judaico em 1994, com base nas denúncias apresentadas pelo procurador Alberto Nisman em janeiro de 2015, quatro dias antes de aparecer morto com um tiro na cabeça em seu apartamento, episódio nunca esclarecido. Segundo Nisman, o governo Kirchner fez um acordo com o Irã para retirar os alertas de terrorismo da Interpol contra cinco iranianos acusados de organizar a explosão que deixou um saldo de 85 mortos e centenas de feridos. Bonadío tentou, mais uma vez sem sucesso, prender a ex-presidenta. Héctor Timmerman, chanceler à época, teve a prisão preventiva decretada. Ele morreu em 2018, o que só fez aumentar o mistério.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1152 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE ABRIL DE 2021

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