Mundo
Os donos da rua
As gangues controlam a capital, impõem a renúncia do primeiro-ministro e vão decidir o futuro político do país


Impedido de voltar ao país, o primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, não resistiu às pressões, internas e externas, e apresentou na segunda-feira 11 sua renúncia. De Porto Rico, onde está “exilado” desde 5 de março, Henry fez um discurso à nação por meio das redes sociais. “Nenhum sacrifício é grande demais”, afirmou. “Quero agradecer ao povo haitiano pela oportunidade que me deu de servir com integridade, sabedoria e honestidade. Precisamos de paz, estabilidade, desenvolvimento duradouro”. A entrega formal do poder, avançou o premier, se dará após a conclusão de “assuntos atuais”, a criação de um conselho de transição e nomeação de um chefe interino de governo.
Paz e estabilidade é tudo o que Henry não deve, nem nunca pode oferecer. Ao contrário. A onda de violência e as guerras de gangues começaram em 28 de fevereiro, em resposta à tentativa do primeiro-ministro de permanecer no poder até 2025, contra um acordo firmado pelas principais forças políticas em 2022, que previa eleições gerais no mês passado. Os haitianos não votam desde 2016. Não há um Parlamento, muito menos um presidente da República. O último chefe de Estado foi Jovenel Moise, assassinado em 2021 por mercenários colombianos. Na mesma segunda-feira da renúncia de Henry, em comunicado, o Conselho de Segurança das Nações Unidas havia apelado a “negociações significativas em prol de eleições livres e justas e a restauração das instituições democráticas o mais rapidamente possível”.
Enquanto a comunidade internacional discute o envio de capacetes azuis da ONU e ajuda humanitária, o Haiti transformou-se em uma terra sem lei disputada por gangues. Porto Príncipe, a capital, é uma “cidade sitiada”, na definição de especialistas das Nações Unidas. No sábado 9, criminosos atacaram o palácio presidencial e a sede da polícia. Nas semanas anteriores, ocuparam estradas e aeroportos, o que impediu o retorno de Henry ao país, e libertaram 4 mil detentos dos dois maiores presídios. Os Estados Unidos e diversos países europeus removeram seus corpos diplomáticos e a Organização Internacional para as Migrações calcula que 362 mil civis, metade crianças, foram forçados a se deslocar para escapar da violência crescente. “Os haitianos são incapazes de levar uma vida decente. Vivem com medo e, a cada dia, a cada hora que a situação persiste, o trauma piora”, alertou Phillipe Branchat, representante da OIM. “Os moradores da capital estão trancados, não têm para onde ir.”
Quem cobiça o poder é um ex-policial condenado por tráfico de drogas
Apontado como o principal líder das gangues locais, Jimmy Cherizier rejeita a interferência internacional. Se continuarem a se intrometer, afirmou a jornalistas, mergulharão o país em um caos ainda maior. “Nós, haitianos, temos de decidir quem será o chefe do país e qual modelo de governo queremos”, acrescentou o ex-policial e capo de uma federação de quadrilhas chamada de Família e Aliados do G9. “Também vamos descobrir como tirar o Haiti da miséria em que se encontra.” Dias antes, havia sido mais ameaçador, caso Henry não renunciasse. Seguimos “direto para uma guerra civil que levará ao genocídio”. Apelidado de Barbecue, Cherizier é acusado, desde os tempos de policial, de crimes brutais, entre eles o assassinato de 71 moradores do bairro La Saline, na periferia de Porto Príncipe, em novembro de 2018. A chacina, organizada por agentes de segurança e grupos criminosos, tinha o objetivo de reprimir a dissidência política. Em entrevista à rede de tevê Al Jazeera em 2021, Barbecue negou a participação neste e em outros extermínios e se apresentou como revolucionário. “Não sou gângster, nunca serei. Luto contra o sistema. Esse sistema tem muito dinheiro e o controle dos meios de comunicação. Agora me pintam como se fosse um bandido.”
Quem cobiça o poder é um atrabiliário ex-comandante das forças policiais com longa ficha criminal. Em 2004, Guy Phillipe liderou o golpe de Estado contra o presidente Jean-Bertrand Aristide. Dois anos depois, foi derrotado nas eleições presidenciais. Em 2016, conquistou uma vaga no Senado, mas não chegou a tomar posse – acabaria extraditado para os Estados Unidos, onde cumpriu seis anos de prisão por lavagem de dinheiro associada ao tráfico de drogas. Deportado para sua terra natal, tornou-se uma das principais vozes da oposição. Phillipe, que tem em comum com as gangues a campanha contra Henry e o apoio de parte da população por prometer linha dura na segurança pública, não esconde suas pretensões: “Sim, vou entrar na política. Fui senador, fui eleito pelo meu povo, irei novamente às eleições”.
Como Barbecue, Phillipe não se considera um criminoso, mas herói da resistência. E se compara a líderes mundiais: “Mandela estava na prisão, Hugo Chávez estava na prisão, Lula estava na prisão… Por isso, se o meu povo acreditar e confiar em mim, serei o seu líder”. Em relatório de fevereiro, a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, sediada em Genebra, assim definiu o ex-policial: “É um dos homens fortes que atravessam a linha entre os líderes de rua e os chefes políticos, acumulando poder considerável”.
Diante do eterno drama de uma nação castigada por desastres ambientais e disputas sangrentas de poder, resta a letra da canção de Caetano Veloso: Pense no Haiti, reze pelo Haiti. •
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os donos da rua’
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