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O universo paralelo onde Trump luta para salvar a democracia norte-americana

Trumpistas insistem que a eleição de 2020 foi fraudada e a invasão do Capitólio foi puxada por infiltrados do FBI

Onipresente. Trump ainda reina supremo na CPAC, com seu rosto estampado em dinheiro de brinquedo e seu nome costurado em chapéus e camisetas - Imagem: Robyn Beck/AFP e Gage Skidmore
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No palco de um salão de hotel brilhando em vermelho, branco e azul, Ron DeSantis relembrava seus dias no Congresso e um livro que escreveu sobre os problemas dos EUA. “Foi lido por uma dúzia de ­pessoas”, disse o governador da Flórida, com rara autodepreciação. DeSantis então disse a uma reunião de conservadores de base na quinta-feira 24: “Revejo aquela época, quase parece meio estranho para mim, porque as ameaças que enfrentamos à liberdade, as ameaças que enfrentamos a uma sociedade justa, são muito mais difundidas do que eram apenas dez anos atrás”.

Muitos americanos em todo o espectro político concordam que algo deu terrivelmente errado na última década. Os liberais podem apontar para o aprofundamento da desigualdade, a ascensão do nacionalismo branco e uma ameaça à democracia pela direita autoritária. Mas DeSantis e seus companheiros de viagem na Conferência de Ação Política Conservadora, a CPAC, em Orlando, na Flórida, não se consideram desmanteladores da democracia, e sim seus salvadores. Em sua visão de mundo, o verdadeiro perigo não vem da “grande mentira” do ex-presidente Donald Trump de uma eleição roubada, mas de uma minoria de esquerda radical impor o socialismo, cancelar a cultura e “despertar” a ideologia na maioria.

Bem-vindo a um universo paralelo onde é comum que Trump tenha sido espionado pela rival Hillary Clinton, a insurreição de 6 de janeiro foi uma posição heroica de patriotas e nomes como Anthony Fauci, Justin Trudeau e ­Black Lives ­Matter com certeza provocarão vaias ruidosas. É um universo onde Wayne ­LaPierre, da National Rifle Association, organização acusada de desviar ilegalmente dezenas de milhões de dólares para viagens pessoais luxuosas, pode ser festejado quando se gaba de um recorde de 5,4 milhões de compradores de armas pela primeira vez no ano passado.

É o universo onde Trump ainda reina supremo, seu rosto estampado em dinheiro de brinquedo e imagens do Super-Homem, seu nome costurado em crachás, chapéus, redes e camisetas que proclamam “Trump 2024”. Os lances para um quadro 12 x 12 cm de Michael­ Shellis retratando o ex-presidente beijando a bandeira americana começaram em 3 mil dólares.

Reunidos em Orlando, os trumpistas insistem que a eleição de 2020 foi fraudada e a invasão do Capitólio foi puxada por infiltrados do FBI

Trump foi o orador principal na CPAC na noite do sábado 26. Uma frase familiar em seus recentes comícios de campanha é: “Não sou eu quem está tentando minar a democracia americana. Sou eu quem está tentando salvá-la”. É um argumento em que muitos na conferência parecem acreditar sinceramente, com base em três justificativas. Primeiro, eles ampliam a denúncia infundada de Trump de uma fraude eleitoral generalizada. Entrevistas com participantes do evento descobriram que isso é considerado um evangelho. Tom Freeman, de 66 anos, comerciante em Jupiter, na Flórida, é um deles: “A fraude em 2020 é real, é enorme, são milhões de votos fraudulentos. A democracia nos EUA está sob ataque, devido à imigração ilegal, fraude eleitoral e manipulação que é feita em nível sistêmico”. A afirmação, rejeitada por autoridades eleitorais e tribunais, é usada para justificar leis abrangentes de supressão de eleitores em estados liderados por republicanos.

Josh Mandel, um candidato agressivamente pró-Trump ao Senado em Ohio, ganhou aplausos quando disse ao público da CPAC: “Temos democratas que pensam que está certo roubar nas eleições, e eu diria a vocês que uma das lutas mais importantes hoje é acabar com a trapaça da esquerda… Quero dizer isso de forma muito clara e direta. Acredito que esta eleição foi roubada de Donald Trump”. ­Mandel descreve Liz Cheney e Adam Kinzinger, membros republicanos de um comitê da Câmara de Deputados que investiga o motim de 6 de janeiro, como “traidores”, acrescentando: “Devemos abolir a comissão de janeiro e substituí-la por uma comissão de 3 de novembro”, referindo-se à data da eleição de 2020.

Reescrever a história da insurreição é o segundo componente desse universo invertido. Em uma sessão da CPAC na sexta-feira 25, intitulada “A verdade sobre 6 de janeiro”, Julie Kelly, autora de um livro sobre o assunto, acusou o governo de perseguir manifestantes inocentes e ocultar 14 mil horas de vídeo de vigilância. “Merecemos saber quantos agentes e informantes disfarçados do FBI estavam envolvidos”, disse ela, expondo outra teoria da conspiração falsa. Kelly acrescentou que, se os republicanos ganharem o controle da Câmara, eles deveriam “girar o comitê de 6 de janeiro 180 graus”, para investigar como os democratas e o Departamento de Justiça “abusaram de seu poder para punir os apoiadores de Trump e criminalizar a dissidência política”.

Os comentários ganharam aplausos entusiasmados na CPAC, onde poucos participantes compartilham a visão convencional de 6 de janeiro como um ataque sedicioso à democracia. Eles são mais propensos a dizer que foi moralmente justificado, ou que alguns manifestantes foram longe demais, ou que foi uma operação de bandeira falsa do FBI destinada a desacreditar os apoiadores de Trump.

Devaneios. Para os eleitores de Trump, a esquerda socialista controla o governo, o Congresso, a mídia e as universidades – Imagem: Zack Roberts/NurPhoto/AFP

Lisa Forsyth, moradora de 54 anos de Tampa, na Flórida, disse que estava em Washington naquele dia, mas não entrou no prédio do Capitólio. “Ver a quantidade de má imprensa só por estar lá é absurdo. Alguns de nós não fizemos nada de errado, mas estamos junto com os infiltrados. Há imagens de vídeo dessas pessoas trocando suas roupas pretas por roupas de Trump. Há imagens de vídeo por aí, mas é uma negação total.” Questionada se sente que a democracia está ameaçada, Forsyth, que é aposentada de uma empresa farmacêutica familiar, responde: “Não usaria essa frase, que os liberais usam o tempo todo, e eu obviamente não sou uma deles. Nossa liberdade está definitivamente ameaçada”.

Ali perto, Rachel Sheley, de 53 anos, diretora de segurança da informação do norte de Kentucky, discordou. “A democracia está ameaçada porque eles estão tentando nos infiltrar com o comunismo”, disse. “Primeira emenda, segunda emenda, eles querem tirar tudo. Se forem bem-sucedidos em fazê-lo um de cada vez, disfarçados, estarão roubando os direitos de nossa democracia.”

Por fim, o movimento parte para a ofensiva acusando os democratas de serem o verdadeiro partido antidemocrático. Essa narrativa sustenta que uma minoria esquerdista não eleita controla escolas e universidades, a grande mídia e os grandes gigantes da tecnologia do Vale do Silício, pressionando o politicamente correto “despertar” sobre transgêneros, raça e outras questões culturais. Segue-se, portanto, que a base conservadora está lutando por uma causa justa em defesa da “verdadeira América”.

“Estamos recuperando este país da esquerda socialista lunática, que está tentando destruir a nossa liberdade”, discursou o senador Ted Cruz, do Texas. Alertando que grandes instituições foram infectadas com o “vírus do despertar”, DeSantis pediu coragem ao público da CPAC. “Temos a oportunidade de fazer de 2020 o ano em que a América lutou. Vamos liderar o ataque aqui na Flórida, mas precisamos que as pessoas de todo o país estejam dispostas a vestir toda a armadura de Deus, a permanecer firmes contra os esquemas da esquerda.”

Mike Pompeo, ex-secretário de Estado, acrescentou: “Não há ameaça maior para os EUA do que aquela que emana de dentro da nossa república, do nosso sistema escolar. Se não ensinarmos aos nossos filhos, à próxima geração, que não somos uma nação racista, certamente os bandidos estarão certos sobre uma América em declínio”.

Hillary Clinton é acusada de conspirar com Moscou, mas foi a campanha de Trump que teve dezenas de contatos com os russos

Tais discursos lançam a luta em termos heroicos, de modo que a crítica só tende a endurecer a mentalidade de cerco e a determinação dos soldados. Os que vagavam pelos corredores da CPAC pareciam compartilhar a visão de Joe Biden de que uma luta pela alma da América está em curso, mas estavam convencidos de que o presidente está no lado errado.

“Claramente, podemos ver, desde o ano passado, que Biden é uma ameaça maior do que Trump jamais foi. Trump estava tentando restaurar o sonho americano. Biden, ninguém sabe o que está fazendo, porque ele não se dirige ao povo americano. Nós nem sabemos se é ele trabalhando nos bastidores”, diz Lauren Lamp, de 22 anos, que trabalha em falências corporativas em Nova York.

Sam Leiter, de 56 anos, acrescenta que a democracia está ameaçada pela cultura do cancelamento. “Você não pode dizer o que quer. Não há liberdade de expressão. Se você não concorda com a esquerda radical, perde o emprego, pode ser manchado e difamado. Eles irão atrás de você e o destruirão.” Mas o que diz Leiter sobre o argumento de que o Partido Republicano cada vez mais autoritário de Trump é a ameaça à democracia? “É um caso clássico de psicologia da projeção”, disse o fonoaudiólogo de Baltimore, Maryland. “Projete em seu cônjuge ou em alguma outra pessoa o que você mesmo está fazendo. Isso sempre existiu nas relações humanas. Nos círculos políticos americanos, Bill Clinton era um mestre nisso. Agora foi provado que foi uma farsa completa, mas durante anos acusaram Trump de conspiração. E era Hillary quem estava conspirando com os russos.”

A campanha eleitoral de Trump em 2016 teve dezenas de contatos com a Rússia. Não há evidências de que Hillary Clinton tenha conspirado com a Rússia. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Universo paralelo “

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