Mundo
O trator Modi
Muçulmanos da Caxemira acusam o governo indiano de endurecer a perseguição política e religiosa


Suhail Ahmad Shah ficou desesperado ao ver os destroços do que durante duas décadas foi o seu sustento. Poucas horas antes, ele estava ocupado na oficina quando ouviu um barulho sinistro acima e o telhado de zinco começou a desmoronar. Ele mal conseguiu escapar antes que uma escavadeira esmagasse todo o lugar. “Nenhum aviso foi feito”, disse Shah, de 38 anos. “Os funcionários vieram de repente e demoliram a nossa oficina. Ninguém nos ouve. Isso não é uma atrocidade? Roubaram o nosso ganha-pão.”
Sua oficina de venda de peças de automóveis de segunda mão em Srinagar, a capital de verão do sitiado estado indiano da Caxemira, foi apenas uma das dezenas de construções em toda a região atingidas por uma ampla campanha de demolições em fevereiro. Muitas aconteceram com pouca antecedência, mesmo para quem ocupava a terra há décadas. O objetivo, segundo o governo, era “recuperar” terras estatais invadidas ilegalmente. Mais de 20 mil hectares foram confiscados antes que a ação fosse interrompida.
Mas na Caxemira a operação foi condenada por ter um propósito mais sinistro. Muitos a criticaram como parte de uma agenda mais ampla do governo nacionalista hindu do Partido Bharatiya Janata (BJP), liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, para deslocar e desapropriar os caxemires de suas terras e mudar a demografia do único estado de maioria muçulmana da Índia.
Desde que o governo Modi chegou ao poder, em 2014, as escavadeiras têm sido uma ferramenta popular para os líderes do BJP atingirem a minoria muçulmana, na busca por uma agenda nacionalista religiosa para estabelecer a Índia como um país hindu, em vez de secular. Em estados como Uttar Pradesh, Délhi, Gujarat e Madhya Pradesh, escavadeiras foram usadas para arrasar as moradias de grupos de ativistas muçulmanos acusados de envolvimento em protestos e de comunidades imigrantes supostamente ilegais.
A repressão a jornalistas, críticos e opositores intensificou-se desde a posse de Modi
Na Caxemira, espalhou-se o pânico de que a chamada “política da escavadeira” do BJP seria implantada contra os muçulmanos. Mehbooba Mufti, ex-ministra-chefe da região, chamou a campanha de demolição de “estratagema para empurrar ainda mais gente para as margens econômicas, demolindo suas casas e meios de subsistência”. Fayaz Ahmad, de 52 anos, cujo ferro-velho de 30 anos foi demolido sem aviso ou advertência, concordou: “Tudo isso é feito para suprimir os caxemires”.
Desde a independência, em 1947, a Caxemira tem sido a pedra de toque entre a Índia e o Paquistão. Eles foram à guerra várias vezes pelo controle do território em disputa, dividido entre os dois países. Do lado indiano ficava o estado de Jammu e Caxemira, onde, desde o início dos anos 1990, surgiu uma violenta insurgência separatista aliada e financiada pelo Paquistão.
Sucessivos governos lutaram para controlar a violência. Mas, em agosto de 2019, o governo Modi, cumprindo uma antiga promessa à sua base de direita, tomou medidas unilaterais contra o estado, privando-o de autonomia e dividindo-o em dois territórios sob controle do governo central. Milhares de soldados foram transferidos para lá, o governo local foi dissolvido, políticos locais foram presos e o mais longo bloqueio de internet do mundo, com duração de 18 meses, foi imposto. Desde então, o BJP abriu as portas do estado, permitindo a forasteiros comprarem propriedades e se registrarem para votar na Caxemira pela primeira vez. Mais de 2 milhões de novos eleitores foram registrados, fonte de grande preocupação para muitos que acreditam que o governo tenta mudar a demografia para tirá-lo da atual maioria muçulmana.
Um redesenho do mapa eleitoral levou a acusações de manipulação, depois de ter ficado claro que os constituintes reformulados dividiriam o voto muçulmano na Caxemira, com provável vantagem eleitoral do BJP. O partido diz que suas ações, desde 2019, trouxeram uma era de paz para a Caxemira. “O investimento está chegando e muitos turistas estão vindo”, discursou o ministro do Interior, Amit Shah. “A Caxemira, lentamente, está voltando ao normal para manter a unidade com o país.”
Os moradores contam, porém, uma história diferente, de opressão sistemática sob leis cada vez mais autoritárias e cujas liberdades democráticas, incluídas aquelas de expressão, de representação política e o direito de protestar, foram esmagadas. A Caxemira é, hoje, uma das zonas mais fortemente militarizadas do mundo, com mais de 500 mil soldados para vigiar apenas 7 milhões de cidadãos, com postos de controle do exército poucos quilômetros uns dos outros nas estradas. A censura, tanto do cidadão comum quanto da mídia, seria prática corriqueira do governo, da polícia e dos militares, e qualquer um que faça críticas por meio de ativismo ou nas redes sociais é imediatamente apanhado.
Imposição. O nacionalista Modi reprime as minorias religiosas e tenta impor o hinduísmo em uma região de disputa com o Paquistão – Imagem: Narinder Nanu/AFP e Presidência da India
Enquanto, em particular, os moradores protestam contra o governo de Modi e falam com medo do futuro, a maioria está apavorada demais para falar publicamente. “Existe medo. Se alguém se manifestar, mesmo nas redes sociais, enfrenta ação policial. Ninguém quer acabar na cadeia”, conta um estudante que pediu para não ser identificado. Seu amigo foi recentemente preso sob leis de segurança severas simplesmente por escrever um post no Facebook que irritou a polícia.
Os jornalistas tornaram-se alvo particular. Novas leis foram aprovadas para controlar rigorosamente suas reportagens, e os poucos que ainda produziram cobertura crítica da região foram submetidos a perseguições e interrogatórios e tiveram seus telefones e laptops apreendidos. Repórteres foram espancados publicamente pela polícia, enquanto alguns acabaram colocados em listas de exclusão aérea, impedindo-os de deixar o país. Nos jornais locais, editores e proprietários deletaram anos de cobertura crítica ao governo, devido à pressão crescente, e jornais antes independentes foram reduzidos a panfletos para comunicados de imprensa do governo. Ao menos três jornalistas da Caxemira, Asif Sultan, Fahad Shah e Sajad Gul, foram presos sob as leis de terrorismo. “Meu irmão está numa situação muito difícil”, disse Javaid Ahmad, irmão de Sajad Gul. “Ele foi colocado numa cela de alta segurança e é tratado como um criminoso perigoso. Ele não tem permissão para fazer ligações para casa. Eles nem mesmo lhe permitiram possuir uma caneta e um diário.”
A democracia continua indefinida. O governo do estado nunca foi restaurado desde 2019, e as eleições regionais não foram realizadas por mais de cinco anos, deixando os caxemires sem representação política ou saída para expressar seu descontentamento. Líderes políticos que passaram suas carreiras a promover políticas pró-Índia, mas estavam entre os presos depois de 2019, acusaram o governo do BJP de autoritarismo. Omar Abdullah, ex-ministro-chefe da região e ex-ministro das Relações Exteriores, disse que os administradores nomeados pelo governo têm “poder absoluto sem responsabilidade”. A ex-ministra-chefe Mufti afirmou que ela e integrantes de seu partido foram “assediados sem parar”. “Estou em prisão domiciliar com frequência e não tenho permissão para realizar atividades políticas ou ajudar pessoas em perigo”, conta. “Ninguém aqui, seja líder político, ativista ou mesmo jornalista, desfruta da liberdade de expressão para articular as realidades básicas.”
Os militantes mulçumanos mudaram de estratégia, realizando assassinatos mais direcionados a não residentes e à minoria hindu. Isso espalhou o medo entre os hindus, comumente chamados de pandits, 65 mil dos quais fugiram do vale na década de 1990, quando foram alvo de uma violenta insurgência pró-Paquistão. Nos últimos meses, outro êxodo de pandits começou. “Não nos sentimos seguros na Caxemira”, disse Rinku Bhat, um dos que fugiram de casa após os assassinatos.
Kavinder Gupta, líder sênior do BJP e ex-vice-ministro-chefe da região, rejeitou as acusações. A militância foi controlada, disse, enquanto garantia que as eleições estaduais aconteceriam em breve numa data não especificada. “Há paz na Caxemira. Isso fica evidente pelo fato de que os moradores não protestam nas ruas nem jogam pedras, como no passado”, disse Gupta. “As pessoas que estavam promovendo a agenda do Paquistão e levantando sua bandeira receberam carta branca dos governos anteriores. As ações tomadas na Caxemira foram necessárias e os resultados estão à nossa frente.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O trator Modi’
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