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O sol se pôs

No epicentro da tragédia, o “dia seguinte” nunca chega e a guerra é total faz tempo

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Soldados israelenses supervisionam os escombros no território libanês, a nova frente aberta de batalha – Imagem: Ibrahim Amro/AFP
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Mesmo na véspera, no máximo cinco indivíduos em todo o planeta sabiam exatamente o que estava planejado. Os serviços de inteligência israelenses foram enganados ou não conseguiram entender. Quem participaria, os militantes do Hamas e alguns grupos aliados, ainda não compreendia os motivos do treinamento recente. Para manter o segredo, Yahya Sinwar, o chefe do Hamas na Faixa de Gaza, havia confiado apenas em três ou quatro homens. Só eles sabiam o que iria acontecer, onde e quando. Então, naquela sexta-feira à noite, em Rafah e Khan Younis, ­Tel-Aviv e ­Sderot, nos kibutzim do sul de Israel, em Beit Lahia e Deir al Balah, a vida continuou como sempre. Somente às seis horas e vinte nove minutos da manhã seguinte, quando milhares de foguetes foram lançados de Gaza em direção a Israel pelo céu a clarear, alguém começou a suspeitar que aquele 7 de outubro seria muito diferente. Mesmo assim, poucos previram a catástrofe que traria, nem o ano de crise que provocaria.

A guerra regional que muitos temem há tanto tempo parece mais próxima do que nunca. Em 7 de outubro de 2023, mais de 1,2 mil israelenses, na maioria civis, morreram. Dos 250 sequestrados naquele dia pelo Hamas, metade foi libertada em um breve cessar-fogo em novembro, e acredita-se que metade dos restantes esteja morta. Ninguém sabe quantos perderam a vida no ataque massivo da última sexta-feira 27 no sul de ­Beirute. Mais de 41 mil foram mortos em Gaza, em sua maioria civis, um em cada 55 da população anterior à retaliação. Mais de 700 faleceram no Líbano na recente onda de ataques israelenses, incluído o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah.

Os palestinos permanecem confinados em Gaza, à mercê da fome. Biden garante o apoio financeiro e militar a Tel-Aviv – Imagem: Said Khatib/AFP, Adam Schultz/Casa Branca Oficial e Menahen Kahana/AFP

Quando a escala e a brutalidade do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro ficaram claras, nos dias seguintes também ficou óbvio que a resposta de Israel seria tão sem precedentes em escala e violência quanto o evento que a provocou. De Londres, o grande quadro pessimista parecia fácil de pintar: um ciclo cada vez mais acelerado de ataques e retaliação que acabaria a se espalhar pelo Oriente Médio. Desde então, vimos a ofensiva israelense em Gaza, uma guerra de atrito na disputada fronteira norte de ­Israel que deixou centenas de mortos, os recentes ataques ­israelenses contra o ­Hezbollah e seus líderes no Líbano, um grande ataque de mísseis e drones do Irã contra Israel, três militares norte-americanos mortos na Jordânia por milícias xiitas apoiadas pelo Irã no sul da Síria, um ataque de forças especiais de Israel e vários ataques aéreos no noroeste da Síria, bombardeios norte-americanos e britânicos no Iêmen em resposta aos ataques dos houthis contra navios internacionais no Mar Vermelho, um líder do Hamas assassinado (presumivelmente) pelo Mossad em Teerã, e um terrível derramamento de sangue na Cisjordânia, enquanto a Jordânia escapou por pouco dos ataques jihadistas, conforme os níveis de radicalização aumentam.

No momento, com uma invasão terrestre israelense no Líbano a se aproximar e a organização militante islâmica apoiada pelo Irã a retaliar na medida do possível, ouve-se falar muito sobre a importância de se evitar uma “guerra total”. Dada a onda de violência por milhares de quilômetros, poderíamos crer que ela está em curso. É totalmente compreensível nossa tentativa de dar definições a esse conflito. Ainda temos uma compreensão anacrônica da guerra, de disputas de força finitas em campos de batalha restritos. Isso ganhou vida nova com a batalha na Ucrânia, que teve tanques, artilharia e infantaria a lutar em cenas que não se viam na Europa desde 1945. Mas conflitos atuais que receberam menos atenção, como o do Sudão, ou os recentes esquecidos com espantosa rapidez, como a guerra civil na Síria, sugerem que, na realidade, os conflitos de hoje são muito diferentes. Eles não sobem e descem numa escala previsível de violência. Não são nem “totais” nem seu oposto, seja o que isso for, mas um fluxo contínuo e dinâmico de vários níveis de violência, em alta num local e em baixa noutro. Eles não terminam, mas reduzem por tempo suficiente para serem ignorados por todos, exceto os imediatamente afetados.

Em Nablus, jovens armados lamentam nunca ter visto o mar, tão perto

Outra frase clara e sem sentido foi usada anteriormente no conflito iniciado em 7 de outubro, quando muitos falaram em planejar “o dia seguinte”. Isso tinha origem numa expectativa inicial de que o ataque seria curto e terminaria com um momento definitivo, quando a reconstrução e a reabilitação pudessem começar. Também foi uma consequência da convicção igualmente irreal de que o governo de Israel permitiria algum tipo de nova estrutura administrativa em Gaza depois de tirar o Hamas do poder, possivelmente a envolver Estados árabes, se não a Autoridade Palestina. Após seis meses de conflito, a frase foi menos ouvida, e agora quase nunca, novamente com razão.

Recentemente, um pai de três filhos em Gaza, um administrador da agência de assistência UNRWA da ONU, um homem sensível e inteligente, descreveu como seu filho muito gentil decidiu ser “um soldado” quando crescer. Essa é uma profissão para a qual o menino provavelmente seria singularmente inadequado, mas sua lógica é que ele precisa ser capaz de ­defender sua casa e, assim, nunca mais ser forçado a deixar seus brinquedos. A criança está no Cairo, após sair de Gaza com sua mãe e irmãos meses atrás, e nunca mais retornará para sua casa e seus brinquedos, destruídos num ataque aéreo no início da guerra. Talvez ele nunca mais retorne a Gaza. Ele está, no entanto, vivo e sua família próxima também.

Muitos outros permanecem apenas na memória dos enlutados. Para nenhum haverá um “dia seguinte”. Nem para os cerca de 80 mil feridos, muitos deles gravemente. Ou para os parentes daqueles que simplesmente desapareceram. São milhares de adultos e crianças possivelmente mortos, jogados em valas comuns ou sob os escombros, talvez simplesmente perdidos, com amnésia, detidos pelas forças de segurança israelenses, inencontráveis.

Os protestos em Israel pela libertação de reféns produzem muito barulho por nada – Imagem: Jack Guez/AFP

O esforço para marcar o tempo, literalmente, não se restringe àqueles em Gaza que, em todas as entrevistas, falaram sobre como perderam a noção dos dias, semanas ou meses e simplesmente queriam que a guerra acabasse. Para as famílias dos reféns mantidos pelo Hamas, os dias que seus entes queridos estão em Gaza são contados um a um, mas, segundo parentes, isso não comunicou nada da experiência vivida de sua angústia. Os próprios reféns libertados falam sobre como perderam a noção do tempo. Reservistas mobilizados para lutar em Gaza descreveram horas em serviço de sentinela, dias de espera, semanas de patrulhamento tedioso, minutos de grande tensão, segundos de extrema violência. Acima de tudo, como disse um deles, o tempo em Gaza “perdeu seu sentido habitual”. Muitos israelenses falam sobre transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em uma escala individual, familiar ou mesmo nacional. Alguns brincam sombriamente estarem ansiosos para ter TEPT, pois atualmente ainda estão na fase do trauma. Ainda não estão no “pós”.

Nos centros de detenção onde os palestinos foram mantidos em Israel, frequentemente submetidos a condições terríveis, o tempo pouco significa num sentido legal, pois quaisquer limites para o encarceramento parecem arbitrários, nem no sentido subjetivo, pois os detidos experimentam o mesmo alongamento e efeito sanfona que outros envolvidos no conflito em outros lugares. Em uma entrevista, um pai insistiu em descrever o tempo exato que passou desde a detenção de seu filho em horas, não em dias, semanas ou meses. Mas um homem preso em uma batida em Tulkarm descreveu como, durante dias com os olhos vendados, ele perdeu todo o sentido das horas que passavam.

Tal subjetividade não se limita apenas a calcular o tempo que passa neste conflito. O mesmo vale para o espaço, quando os entrevistados falaram sobre a duração da guerra. Claro, linhas podem ser desenhadas em mapas. São apenas 40 minutos de carro ao sul do lugar onde jovens israelenses curtem o café da manhã ao sol no centro de Tel-Aviv até o local do festival Nova, onde centenas de israelenses de idade semelhante foram mortos a tiros enquanto festejavam, ou mesmo para partes de Gaza onde a ONU identificou bolsões de fome. De carro, em direção ao norte, é apenas uma hora ou mais até Haifa, alvo de mísseis do Hezbollah, e depois a fronteira, onde 70 mil moradores foram evacuados por medo de uma versão do Hezbollah do ataque de 7 de outubro e permaneceram deslocados. Beirute, se as fronteiras estivessem abertas, é apenas uma curta e espetacular viagem mais à frente.

O principal teatro da violência, Gaza, permanece fechado para a mídia

O espaço mais importante para muitos israelenses não pode, no entanto, ser plotado num mapa. Muitos civis morreram em 7 de outubro em suas salas de segurança. Estas não são bunkers reforçados, mas lugares designados nas casas, geralmente um quarto, com proteção adicional mínima, onde os moradores se abrigam até o perigo passar ou as forças de segurança virem resgatá-los. Em 7 de outubro, não foram as forças de segurança que entraram nesses espaços mais íntimos, mas os militantes do Hamas. Isso, num país criado na crença de que daria a um povo perseguido um lugar onde eles estariam seguros e onde a fé na capacidade do exército de proteger é fundamental, significou mais do que a tomada de qualquer local estratégico por um inimigo.

Na Cisjordânia ocupada, onde bloqueios e outras restrições impostas pelas autoridades israelenses cerraram as vidas de milhões, moradores palestinos descreveram olhar por meio de um vale para suas oliveiras e saber que, apesar da curta distância, eles não podem andar pelo solo rochoso para fazer a colheita. Em Nablus, jovens armados de rifles de assalto falaram sobre morrer como mártires e que nunca tinham visto o mar, a 42 quilômetros de distância. Em Tulkarm, onde lonas lançam sombras em ruas estreitas para dar a homens armados cobertura dos drones israelenses, aqueles preocupados em alimentar suas famílias falaram sobre antigos locais de trabalho em Israel a poucos quilômetros de distância, agora totalmente inacessíveis.

Um aspecto particular desse conflito radicalmente diferente de outras guerras, ao menos para um repórter, é que o principal teatro da violência, de 8 de outubro em diante, esteve fechado para a mídia. Outros conflitos foram quase impossíveis de alcançar, ou foram completamente esquecidos por outras razões, mas poucos tiveram importância e interesse tão imediatos para tantos e foram tão inacessíveis. Nas primeiras semanas do conflito, equipes de tevê transmitiram do local conhecido entre os jornalistas como o “morro da vergonha”, uma colina em Israel que tinha uma visão ­desobstruída, embora distante, da borda norte de Gaza e, portanto, de sua crescente destruição com o passar dos dias.

O Irã do aiatolá Khamenei tem se mostrado muito mais contido do que se imaginava – Imagem: AFP

Centenas de mensagens e ligações de e para Gaza permitiram que uma ideia do que se passava fosse meticulosamente construída: as ondas de bombardeios, a destruição de todos os elementos de uma vida anterior, as escolas transformadas em campos superlotados para os deslocados, a falta de comida, o medo sempre presente. Um médico da Cruz Vermelha descreveu a ­realização de ­dezenas de amputações em um dia, crianças gravemente queimadas morrendo com anestesia insuficiente e o horror da triagem em salas de emergência lotadas. Autoridades da ONU descreveram as dificuldades que enfrentaram para levar apoio humanitário.

Mas esse deslocamento, relatar uma guerra a tal distância, trouxe oportunidades estranhas. Um repórter em Jerusalém podia passar horas a fazer ligações para Gaza de um quarto de hotel e depois caminhar pela Cidade Velha até o Muro das Lamentações, o local de oração mais sagrado disponível para os judeus, para relatar um protesto em apoio aos reféns em Gaza. Numa noite bonita, se a visibilidade fosse boa e os prazos permitissem, seria possível caminhar mais, até um esporão de onde se podia ver a crista além do Rio Jordão, a luz distante das cidades piscando no crepúsculo.

Os últimos dias sublinharam a inadequação do nosso vocabulário para este momento do conflito. Sinwar ainda está vivo, embora não tenha saído por muitos meses da extensa rede de túneis que ele construiu sob Gaza com fundos que poderiam ter sido usados para escolas e hospitais, e sabendo que, se os israelenses atacassem, estaria seguro, enquanto os civis acima sofreriam. Benjamin ­Netanyahu trovejou desafios beligerantes na ONU, ignorando os apelos cada vez mais patéticos de seu aliado mais poderoso para fazer algum tipo de paz. Em Beirute, um quarteirão inteiro foi arrasado e o líder do Hezbollah, importante ativo iraniano, está morto. É impossível dizer até onde tudo isso leva, mas podemos ter certeza de uma coisa: o fato de não haver uma “guerra total” faz pouca diferença para aqueles que estão sob as bombas e, ao menos para eles, também não haverá um “dia seguinte”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O sol se pôs’

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