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O Santo Graal do trigo

Após finalmente dominar a genética do grão, cientistas vão testar uma variante resistente ao aquecimento global

O Santo Graal do trigo
O Santo Graal do trigo
O trigo é essencial na dieta de 4,5 bilhões de habitantes do planeta - Imagem: Kirsten Strough/Ministério da Agricultura/ EUA
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É a planta que mudou a humanidade. Graças ao cultivo do trigo, um número cada vez maior de Homo sapiens pôde se alimentar, transformando grupos de caçadores-coletores em luta pela sobrevivência num mundo hostil em senhores do planeta. No processo, uma espécie de capim selvagem que antes se limitava a uma pequena parte do Oriente Médio hoje cobre vastas extensões da Terra. Como observou o historiador ­Yuval Noah Harari, “nas grandes planícies da América do Norte, onde 10 mil anos atrás não havia um único talo de trigo, hoje você pode percorrer centenas e centenas de quilômetros sem encontrar qualquer outra planta”.

O trigo fornece atualmente 20% das calorias consumidas pelos seres humanos todos os dias, mas sua produção está ameaçada. Graças ao aquecimento global induzido pelo homem, nosso planeta enfrenta um futuro de ondas de calor cada vez mais severas, secas e incêndios florestais que podem devastar colheitas futuras, desencadeando a fome generalizada em seu rastro. Mas a crise pode ser evitada graças a pesquisas notáveis realizadas por cientistas do Centro John Innes, em ­Norwich, no leste da Inglaterra. Eles trabalham num projeto para tornar o trigo mais resistente ao calor e à seca. Esses esforços se mostraram extremamente complexos, mas devem ser objeto de um novo conjunto de testes dentro de algumas semanas, como parte de um estudo no qual variedades de trigo – criadas, em parte, por tecnologia de edição de genes – serão plantadas em testes de campo na Espanha.

A capacidade dessas variedades de suportar o calor da Península Ibérica determinará até que ponto os agrônomos conseguirão proteger futuras fazendas aráveis das piores consequências da mudança climática e, assim, aumentar a produção de alimentos para os bilhões de habitantes da Terra, diz a equipe do Centro John Innes.

O trigo não foi o único agente botânico que alimentou a revolução agrícola. Outros alimentos básicos, como arroz e batatas, desempenharam papel importante. Mas o trigo geralmente recebe o papel principal no desencadeamento da revolução agrícola que criou nosso mundo moderno de “explosões populacionais e elites mimadas”, como diz Harari em seu best seller internacional Sapiens. Duas formas principais de trigo são cultivadas nas fazendas: para macarrão e para pão. Juntas, elas desempenham um papel crucial na dieta de cerca de 4,5 bilhões de seres humanos, disse o professor Graham ­Moore, geneticista do trigo e diretor do Centro John Innes, um dos principais institutos de pesquisa agrícola do mundo. “Destes, cerca de 2,5 bilhões em 89 países dependem do trigo para a alimentação diária, então você pode ver como essa cultura é vital para o mundo”, acrescentou.

O problema enfrentado pelos cientistas agrícolas, que buscam melhorar a resiliência e a produtividade das variedades de trigo, tem sido a complexidade genética da planta, acrescentou Moore. “Os seres humanos têm um único genoma que contém nossas instruções de DNA. Mas o trigo para macarrão tem dois genomas ancestrais diferentes, enquanto o trigo para pão tem três.”

O cereal fornece 20% das calorias diariamente consumidas pelos seres humanos. A produção global está ameaçada

Essa complexidade teve consequências importantes. Para controlar seus diferentes genes e cromossomos, o trigo adquiriu um gene estabilizador que segrega os diferentes cromossomos em seus vários genomas. Isso garantiu que essas formas de trigo tivessem alto rendimento. O gene também suprime, no entanto, qualquer troca de cromossomos com parentes silvestres do trigo, frustrando os esforços dos geneticistas que tentam fazer novas variedades com propriedades benéficas. “Os parentes silvestres têm características realmente úteis – resistência a doenças, tolerância ao sal, proteção contra o calor –, atributos que desejamos adicionar para tornar o trigo mais robusto e fácil de cultivar em condições adversas. Mas não podíamos fazer isso porque esse gene impedia que esses atributos fossem assimilados.”

Esse gene era conhecido como o “Santo Graal” dos geneticistas do trigo, acrescentou Moore. “O trigo, apesar de sua importância crítica para alimentar o mundo, provou ser a cultura mais difícil de estudar dentre todas as principais, devido à complexidade e ao tamanho de seu genoma. Daí a importância da busca para encontrarmos o gene que causava esse problema.”

Demorou várias décadas, mas os cientistas do Centro John Innes agora tiveram sucesso na busca pelo Santo Graal. Identificaram o gene-chave, rotularam-no de Zip4.5B e criaram uma versão mutante que pode realizar sua função principal – permitir que os cromossomos do trigo se emparelhem corretamente e mantenham os rendimentos –, mas que não tem a capacidade de bloquear a criação de novas variantes com atributos de gramíneas silvestres. “Uma ferramenta fundamental nesse trabalho foi a edição genética, que nos permitiu fazer mudanças precisas no DNA do trigo. Sem isso, ainda estaríamos a lutar com isso. Tem feito toda a diferença.”

Os cientistas do John Innes descobriram desde então que existem ao menos 50 versões diferentes do Zip4.5B. “Agora vamos testá-las em diversas variedades de trigo que criamos”, acrescentou Moore. “Elas serão cultivadas na Espanha, em terras perto de Córdoba, para ver como se saem. O objetivo será identificar quais variedades sobreviverão melhor às temperaturas mais altas que nossos agricultores experimentarão nas próximas décadas”.

O cientista prossegue: “O trigo desempenhou um papel notável na história da humanidade. Esperamos que este trabalho ajude a manter sua importância como alimento no futuro.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Santo Graal do trigo “

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