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O regresso da velha ordem

A visita de Nancy Pelosi acelera a formação de dois blocos, como nos tempos da Guerra Fria

Bagunça. De olho nas eleições parlamentares de novembro, Pelosi foi procurar em Taiwan sarna para se coçar - Imagem: Hector Retamal/AFP e Sam Yeh/AFP
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Se fosse adepto de teorias da conspiração, diria que a decisão de Nancy Pelosi de visitar Taiwan ficou a dever à influência de uma qualquer infiltração chinesa no seu partido. A visita foi um erro político tão estouvado que parece ter sido feito a pedido da China. Em primeiro lugar, esse erro permitiu a Pequim reforçar a sua principal reivindicação política de uma só China, que está, como sabemos, absolutamente legitimada por uma resolução das Nações Unidas. Em segundo lugar, a visita permitiu também reforçar a legitimidade do Partido Comunista, que é, como sabemos, baseada no sucesso econômico, na unidade nacional e na defesa do país contra as ameaças externas. Em terceiro lugar, a visita permitiu lembrar a opinião pública chinesa de que Taiwan representa a última das limitações à soberania nacional e evocar a forte memória histórica de um século de humilhações ocidentais. Finalmente,  a visita também reforçou a ligação entre a China e a Rússia, que era tudo o que o Ocidente menos precisava neste momento. Em suma, a visita foi um desastre para as pretensões geopolíticas dos Estados Unidos.

E, não, a resposta chinesa não é desproporcional. Ela reflete, isto sim, a assimetria de interesses na zona do Estreito de Taiwan. Para a China trata-se de reclamar a sua soberania sobre um território perdido e proteger a sua segurança nas proximidades do seu país. Para os Estados Unidos, os seus interesses têm a ver com manter alianças com outros países, manter a hegemonia política e militar na região do Indo-Pacífico e proteger a liberdade de navegação. Não é a mesma coisa. Os dois paí­ses têm motivações diferentes para agir e esse quadro de interesses deixa os aliados norte-americanos menos confiantes nos compromissos dos seus parceiros. Os exercícios militares chineses destinaram-se a exprimir, perante toda a comunidade internacional, uma das mais importantes prioridades da sua política externa, que está, como já referi, devidamente legitimada pela história e pelo direito internacional. Se fosse ao contrário, se os Estados Unidos realizassem exercícios militares junto da sua fronteira para expressar uma prioridade política legítima de soberania e de segurança, ninguém os consideraria desproporcionais. O uso de duplos critérios nas relações internacionais não resolve nenhum problema, só os agrava.

A viagem mostrou-se um desastre para as pretensões geopolíticas dos EUA

Em benefício de uma melhor compreensão dos acontecimentos atuais, talvez seja adequado certo esforço de enquadramento histórico. Primeiro ponto. A maior mudança geopolítica ocorrida nos últimos 40 anos foi o súbito deslocamento do centro de gravidade econômico mundial do Ocidente para o Oriente (o momento de maior visibilidade desse fenômeno deu-se em 2019, quando a economia chinesa ultrapassou a dos Estados Unidos em paridades do poder de compra). Segundo ponto. Mudanças como esta ocorreram antes na história, mas nunca num nível tão rápido. Terceiro ponto. Esta mudança fica a dever-se, em especial, ao extraordinário crescimento econômico chinês conseguido nas últimas quatro décadas (mais uma vez, julgo que é justo contar a partir da chegada de Deng Xiaoping ao poder). Quarto ponto, e talvez o menos reconhecido. Este sucesso foi conseguido num quadro de governação mundial dominado pelo Ocidente, com instituições ocidentais e com regras ocidentais. Em resumo, a China foi a grande vencedora da globalização promovida entusiasticamente pelo Ocidente. As alterações na riqueza das nações sempre trazem consigo mudanças na distribuição e no equilíbrio de poder internacional. É, portanto, absolutamente normal e razoável que a China reclame uma nova participação na ordem econômica mundial que seja equivalente ao seu novo estatuto. Estranho seria se não o fizesse.

Por outro lado, quando olhamos com objetividade para o quadro militar na zona do Indo-Pacífico, podemos ver que os Estados Unidos têm centenas de bases militares na região (só no Japão são 23). A China não tem nenhuma (a única base militar chinesa no estrangeiro é em Djibuti, aberta em 2017). Com esses números é difícil dizer quem está a cercar quem. Nos tempos de Bill Clinton e de George W. Bush, a China era vista como um “parceiro estratégico”, ou como um “membro responsável” da comunidade internacional. No fim da década passada, tudo mudou. Em 2017, a estratégia de segurança nacional passou a considerar a China um “competidor estratégico” e a afirmar que os Estados Unidos procurariam áreas de cooperação com os seus competidores “a partir de uma posição de força, acima de tudo assegurando que o nosso poder militar continuará inigualável”. Com esse discurso oficial é difícil dizer quem ameaça quem.

As diversas “ordens mundiais” sempre resultaram mais da contingência política e do incidente fortuito do que de doutrinas estratégicas previamente concebidas. Este momento, infelizmente, não é diferente. O que quer que seja que esteja a nascer desta situação de guerra na Ucrânia, desta visível corrida aos armamentos e do escalar da tensão política entre a China e os Estados Unidos, é possível identificar a linha de força da nova ordem em construção – a separação dos mundos. Dois campos, dois blocos políticos, dois mundos. De um lado a China e a Rússia, compondo o núcleo essencial de um bloco. Do outro, os Estados Unidos formando com os países do G-7 a vanguarda do grupo ocidental. Durante os quase 30 anos que se ­seguiram à Guerra Fria, muitos tentaram centrar o debate político internacional na organização da globalização: um só mundo, um só planeta, uma agenda de cooperação mundial. Esse mundo parece estar a desaparecer. E, pior ainda, sem resistência política que se oponha. •


*Ex-primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O regresso da velha ordem “

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