Mundo
O rato ruge
Em inferioridade tecnológica e numérica, os ucranianos prometem resistir à ameaça de Moscou


O clima nos últimos dias na Ucrânia era espantosamente calmo, apesar das conversas sobre a guerra. A primeira neve do inverno cobriu Kiev. Muitos moradores ainda comemoravam o Natal ortodoxo, celebrado em 7 de janeiro, ou tinham viajado durante o feriado. Bares e restaurantes tocavam Let It Snow, com Dean Martin, enquanto os pinheiros na Praça da Independência pareciam uma mini-Nárnia.
Claro, a Rússia poderia invadir a qualquer momento. Mas, como ressaltam os ucranianos cansados, o país está em guerra há oito longos anos, desde que Vladimir Putin anexou a Crimeia e provocou um conflito brutal no leste da nação, que já custou quase 14 mil vidas. O ciberataque na madrugada de sexta-feira 14 a sites do governo foi apenas o último de uma série de atos hostis. O que fazer no caso de uma operação militar de Moscou: ficar, fugir ou lutar? O consenso, ao menos segundo pesquisas, é de que um terço da população está pronta para pegar em armas. No bairro elegante de Podil, com mansões art déco, um novo grafite dizia: “Saiam, russos!”
Sentado em um escritório de advocacia do outro lado da rua, Serhii Filimonov explica o que pretende fazer, caso o Kremlin ataque. “Somos aproximadamente 50. Vamos nos reunir e decidir onde podemos lutar melhor.” Seu grupo é formado por profissionais de classe média: pessoal de computação, designers, atores e jornalistas. Filimonov tem uma empresa de segurança e estrelou um filme exibido em Veneza.
Putin não aceita o ingresso da Ucrânia na Otan
Nada disso tem probabilidade de alarmar o Ministério da Defesa da Rússia, que enviou 100 mil soldados à fronteira da Ucrânia. Esta inclui a frente existente entre o exército ucraniano e os territórios separatistas dirigidos por Moscou, Donetsk e Luhansk a leste, assim como a Bielorrússia ao norte, a Crimeia ao sul e o enclave russo da Transnístria a oeste. Mas os criativos de Kiev sabem atirar. Todos são veteranos da guerra de 2014. Filimonov participou da sangrenta batalha de Ilovaysk, quando o exército russo cercou as forças da Ucrânia, e foi ferido em um ataque inimigo com morteiros. Depois de uma operação para retirar estilhaços, ele voltou à frente, servindo como voluntário contra Moscou no Batalhão Azov. “Temos armas registradas. Vamos defender as nossas casas”, disse. “Putin quer recuperar as fronteiras do império russo. Você pode ver isso na Bielorrússia, no Cazaquistão… Aqui, na Ucrânia, ele quer criar um tsarstvo – um domínio do tsar. Esta é uma guerra de civilizações. É o Ocidente contra a Eurásia, a democracia contra a escravidão e o autoritarismo. Queremos democracia e liberdade.”
A maioria dos especialistas concorda que o exército, a força aérea e a marinha russas, enormemente superiores, poderiam tomar o território ucraniano rapidamente. Mas Andriy Zagorodnyuk, o ex-ministro da Defesa de Kiev, diz que os militares do Kremlin, muitos deles recrutados, imediatamente enfrentarão resistência se tentarem ocupar cidades. Voluntários como Filimonov e pequenos grupos militares lançarão ataques sangrentos. “Realmente, não há pânico. Não vejo nenhum pânico”, disse Zagorodnyuk ao Observer. Ele reconheceu a relativa fraqueza militar da Ucrânia, mas disse que Kiev tem cerca de 500 mil soldados, incluídos os reservistas. Ela está pronta para uma guerra “em grande escala”, afirmou.
Masi Nayyem, advogado que fundou o escritório em Podil, admite que não vê a hora de atirar nos russos de novo. Em 2016, ele lutou com uma brigada de paraquedistas em Avdiyivka, a linha de frente ucraniana próxima a Donetsk, em mãos dos rebeldes. “Em tempos de paz você precisa ser sério, responsável. Na guerra, não precisa ter qualquer consideração ou pensar nas consequências. É preto e branco.”
Putin tem uma visão czarista da ordem mundial e do papel do Kremlin – Imagem: Official Kremlin
As negociações entre a Rússia e os Estados Unidos, a Otan e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa terminaram num impasse. O Kremlin pediu garantias do governo Joe Biden de que a Ucrânia e a Geórgia nunca entrarão na Otan. Na essência, ele quer derrubar a ordem pós-Guerra Fria – restaurar a Europa Central e do Leste como zonas de influência russa, no estilo do Pacto de Varsóvia, do qual as tropas e os armamentos da Otan são banidos.
Por baixo da retórica dura do Kremlin há um mistério. Não está claro por que Putin se move com tal pressa estratégica, exigindo que os Estados Unidos e seus aliados reescrevam as regras de segurança internacionais a favor da Rússia. Suas exigências são “inverossímeis”, como disse a negociadora dos EUA e vice-secretária de Estado, Wendy Sherman. O possível objeto de Putin, sugeriu ela, era estabelecer um pretexto para a guerra.
Andrew Wilson, professor de estudos da Ucrânia no University College London, disse que o momento é oportuno pela perspectiva do Kremlin. Putin prendeu seu principal crítico interno, Alexey Navalny, e esmagou o movimento de oposição. A Rússia nada em dinheiro, graças ao aumento dos preços da energia. No cenário internacional, o Kremlin enfrenta uma administração norte-americana que considera fraca e indecisa. O que poderá acontecer agora? “Fabricar uma crise para gerar oportunidades é o que os russos fazem”, disse Wilson. E acrescentou: “Não acho que uma invasão em plena escala seja a possibilidade número 1. Os ucranianos têm anunciado com sucesso o enorme custo da invasão e ocupação, mas Putin precisa vencer de algum modo, seja em segurança europeia ou na própria Ucrânia”.
O comediante que preside a Ucrânia busca apoio no Ocidente
Tudo isso coloca um dilema para os observadores: como relatar uma crise que não é exatamente uma crise, e parece existir principalmente na cabeça de Putin? É evidente que o presidente russo tem sentimentos emotivos sobre a Ucrânia. No último verão, ele escreveu um longo artigo, no qual afirma que a Ucrânia e a Rússia são “um só povo”, dividido pelos caprichos da cartografia bolchevique e a interferência ocidental. “Sem nada acontecendo ainda em campo, não há nada que eu possa relatar para dizer algo novo e impactante”, afirmou Nataliya Gumenyuk, jornalista e escritora ucraniana, reconhecendo que é difícil entender um conflito em que a Ucrânia muitas vezes parece uma observadora. Ela acrescentou: “Estamos na posição de esperar pelo ‘pior cenário’, sem nenhuma chance de influenciar o resultado”.
Gumenyuk disse que o objetivo do Kremlin é recuar o relógio ao início dos anos 1970, antes que a União Soviética assinasse os acordos de Helsinque que garantiram os direitos humanos, um erro, aos olhos da atual liderança agressiva de Moscou. Outros afirmaram que o modelo preferido de geopolítica de Putin é mais antigo, o imperialismo do século XIX, quando as grandes potências esmagavam as menos poderosas.
Em um artigo de opinião para The New York Times, a eminente cientista política russa Lila Shevtsova disse que o atual impasse sobre a Ucrânia tem pouco em comum com os acordos políticos fechados em Yalta em 1945, ou no Congresso de Viena em 1815. Na época, os participantes respeitavam as regras. “O objetivo de Putin, realmente, é uma ordem mundial hobbesiana, construída sobre a disrupção e a prontidão para avanços de surpresa”, escreveu.
Como um avanço de surpresa poderia se transformar numa guerra é um tema de conversa no governo de Kiev do comediante que virou presidente Volodymyr Zelensky. Ele pouco foi visto recentemente. Zelensky teve uma vitória arrasadora em 2019, depois de fazer campanha com uma plataforma de paz. Diante da intransigência russa pelo destino dos territórios ocupados da Ucrânia, ele moveu-se na direção da Otan e do Ocidente.
As tropas ucranianas se mobilizam na fronteira. Zelensky apela aos EUA e à Europa – Imagem: Official Presidence U.A e Anatolii Stepanov/AFP
Os órgãos de inteligência dos EUA dizem que o risco de invasão é “alto”. Seus colegas ucranianos acham que Moscou pode planejar uma “provocação encenada”. Esta poderia assumir a forma de um ataque a cidadãos russos, talvez na embaixada ou no consulado, ou contra soldados russos na Transnístria. O Kremlin culparia pelo “ataque” os nacionalistas de extrema-direita ucranianos, com o incidente sendo usado para propaganda e como motivo para a guerra.
Alex Kovzhun, estrategista político que assessorou a ex-primeira-ministra da Ucrânia Yulia Tymoshenko, disse que o Kremlin precisava criar uma história atraente. “Eles são obcecados pela audiência na tevê. Todos nós ucranianos somos figurantes em seu programa de tevê interno. Eles são os protagonistas. De vez em quando, eles mudam os bandidos. A Ucrânia não é sua locação preferida.”
Kovzhun acrescentou: “Um dispositivo de narrativa pós-moderno fantástico é a piscada. Em 2014, Putin piscou quando disse que não havia unidades russas na Crimeia. É uma conspiração. Ele convida todos os espectadores russos a compartilhar essa conspiração. Ele usou a piscada em Salisbury. Todo mundo sabia que dois idiotas russos viajaram para lá para matar Sergei Skripal, como parte de uma operação especial”.
Simplesmente, é possível, é claro, que a atuação de Putin faça parte de um blefe elaborado, o último de uma série de testes de estresse que visam revelar fraquezas entre a classe governante no Ocidente e os Estados Unidos. Ninguém pode realmente saber, exceto o homem do Kremlin. Mas Filimonov pensa que uma tempestade está a caminho. “Estamos convencidos de que alguma coisa vai acontecer”, disse. “Putin precisa da Ucrânia. Uma tentativa de tomá-la é inevitável, mas lutaremos até o fim.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O rato ruge”
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