Mundo

assine e leia

O que vi na Ucrânia

Não há medo na população, apesar dos anos de suplício

O que vi na Ucrânia
O que vi na Ucrânia
Terra arrasada. Nos arredores de Kiev, casas destruídas, restos de mísseis e a lembrança das vítimas do exército russo – Imagem: Vitor Hugo Burko
Apoie Siga-nos no

Fui de ônibus de Varsóvia a Kyiv. Sim, a grafia correta é Kyiv. Dezoito horas de viagem. Nenhum voo é permitido. No trajeto, tudo parecia relativamente normal. Na chegada fui recebido por Mariana, profissional de um grande escritório de advocacia. Ela me acompanhou durante toda a minha estada. Bastante incomodada com a guerra. Fiquei hospedado em um hotel lindíssimo, quase vazio, ao lado de um parque que margeia o Rio Dnipro. Mariana me indicou um bunker próximo para me abrigar em caso de alerta.  Cidade linda. Movimentada, organizada e muito bem estruturada. Não vi sinais de guerra. Depois entendi o porquê. Fui com Mariana conhecer os arredores. Experiência chocante. Passei pelas estradas por onde entraram os primeiros tanques russos. Nenhuma instalação militar. Somente casas de civis, algumas propriedades rurais e pequenas empresas. Tudo destruído. Paredes ainda de pé, perfuradas por balas de metralhadora. Muitos sinais de foguetes e tiros de canhão. Nada foi poupado.

Não foi uma invasão militar. Não foi um combate entre exércitos. Foi uma caçada humana. Alguns conflitos étnicos ao redor do mundo têm raízes históricas de agressões mútuas. Nada justifica soldados atirarem contra cidadãos desarmados. Mas ao menos há uma explicação histórica, que se insere nas mentes dos agressores, que a usam como justificativa. E nesse caso? Qual conflito histórico poderia embasar tal barbárie? O que fez o povo ucraniano historicamente contra a ­Rússia? O extermínio de mais de 6 milhões de ucranianos pela fome imposta por ­Joseph ­Stalin foi motivada por qual conflito? Foi vingança? Tentativa de autoproteção?

Quais agressões os ucranianos praticaram contra os russos? A Ucrânia acreditou na promessa russa e entregou o arsenal nuclear em troca de proteção e garantia de território. Quanta ingenuidade. Os motivos de Stalin são os mesmos de Vladimir Putin. Não há risco. Não há agressão. Não há motivos para ressentimentos, nem de vingança. Haveria de parte da Ucrânia, jamais da Rússia. Algum tempo passei lá com um diplomata. Ele me explicou o contexto histórico. A espinha dorsal do império russo, seja como for chamado, é composta basicamente de três etnias: os bielorrussos, os ucranianos e os russos. A primeira estruturação desse grande grupo era chamada de “Rus de Kyiv”, Estado europeu criado pelo príncipe Oleg no ano de 880, que abrangia a Ucrânia, a Bielorrússia e parte da Rússia. O principado de Moscou era parte, e aproveitando a invasão do império Mongol, por meio da vassalagem, deslocou o centro de poder para a sua sede. Depois, alguns governantes tentaram encontrar raízes de seu Estado reescrevendo a história. Sem outros povos eslavos orientais, historicamente a Rússia não tem vínculos com os povos europeus. Assim, precisam da Ucrânia até para ter a história. Em 1721, Pedro, o Grande, para vincular sua cultura à europeia, trocou o nome de Principado de Moscou para Rússia, assim vinculando o nome ao antigo Estado – Rus de Kyiv –, mas agora com sede em Moscou.

O mundo se dará conta do grande serviço prestado pela resistência do país

Os bielorrussos, no contexto histórico, foram dominados e descaracterizados. Sobrou o teimoso e renitente povo ucraniano. Tem sido historicamente assassinado e perseguido para abandonar costumes, cultura e língua. É muito mais que uma questão territorial. É o ego doentio de governantes que atiram seus amigos de janelas de prédios e envenenam seus críticos. É a tentativa de utilização do terror para a supressão da história de um povo.

Destruíram todas as indústrias do Donbass. Minaram todos os campos agrícolas. Não há mais riqueza. Não se destrói aquilo que queremos possuir. Putin não deseja 20% da Ucrânia. Tentou fazer um “passeio militar”, aterrorizando o povo. Utilizando o território da Ucrânia como degrau e seu povo como vassalo da tirania. Passou vergonha histórica. Nos primeiros dias, citou o império de Pedro, o Grande. Chegou a citar que a Grande Rússia se estenderia até Berlim. Abastecia a energia de boa parte da Europa. Pensou que teria o direito de dominar novamente boa parte dela. Teve seus sonhos interrompidos pelo exército ucraniano. Está até hoje circunscrito à parte do território ucraniano. Teve muitos tanques, navios e aviõe­s destruídos. Na verdade, o seu império militar se demonstrou frágil e ineficiente.

Passei em frente a diversos cemitérios e murais com a bandeira da Ucrânia e fotos dos jovens assassinados por essa tirania. Não vi fraqueza nem medo no povo. Visitei uma fazenda e fotografei os restos de foguetes, pedaços de bombas e estilhaços recolhidos por lá. Bombas de fragmentação lançadas contra agricultores. Pedaços de ferro com o propósito de dilacerar cidadãos que somente têm como arma seu arado e a plantadeira.

Que tipo de ser doente é capaz de exterminar uma geração inteira, inclusive de seus próprios cidadãos, meramente para satisfazer seu próprio ego? E que tipo de gente é você, que tenta encontrar justificativa para endossar esse tipo de atrocidade? Estive com Batyr, um produtor rural que tem dois filhos no exército ucraniano. Nenhum medo ou insegurança. Nenhuma esperança nas promessas vazias de Putin. As casas e propriedades que continuam destruídas somente o estão porque as famílias foram integralmente assassinadas. Aqueles que sobreviveram, rapidamente consertam o que foi danificado. Por isso não vi destruição em Kyiv. O povo ucraniano imediatamente recomeça sua vida e mais uma vez mantém vivas sua resiliência e sua esperança.

Saí de Kyiv embarcado em um trem fora da estação fechada por alerta de ataque. Um tempo depois o trem para por algumas horas. Mais um alerta. Naquela noite nada aconteceu. Não escutei explosões nem presenciei ataques. Poucos dias depois, Putin continuou a matar civis desarmados. No dia 28, foram 600 drones, mais de 30 mísseis, 25 mortos e dezenas de feridos, só na capital. Não é confronto militar. É o terror de um louco, tentando intimidar uma nação.

A Ucrânia sobreviveu a diversos tiranos e resistiu a muitos exércitos opressores. Vai sobreviver também a Putin. Quando esse martírio terminar, pois nenhuma ação humana é eterna, a Ucrânia vai se levantar novamente. Vai contar com a solidariedade do mundo para reconstruir suas casas e indústrias, e reutilizar seus campos. Ainda que tardiamente, o mundo se dará conta do grande serviço que a bravura do povo ucraniano presta à humanidade, ao segurar o avanço dessa horda terrorista. •


*Advogado, foi prefeito de Guarapuava (PR). Colaborador do movimento Humanitas Brasil-Ucrânia.

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que vi na Ucrânia’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo