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O que o reconhecimento do Estado palestino significa?
Vários países europeus, entre eles Reino Unido e França, estão reconhecendo o Estado palestino, sob protestos de Israel. Especialistas explicam que gesto é sobretudo simbólico e deve ser acompanhado de medidas práticas


O Reino Unido, o Canadá e a Austrália tornaram-se neste domingo 21 as primeiras grandes nações ocidentais a reconhecer um Estado palestino, seguidos por Portugal. Os quatro países anunciaram a medida pouco antes do início dos debates na Assembleia Geral da ONU em Nova York, nesta segunda-feira. Outras nações ocidentais pretendem seguir o exemplo ainda durante o evento, apesar dos protestos de Israel.
Em paralelo à Assembleia Geral da ONU, França e Arábia Saudita organizarão em Nova York um encontro para pressionar pela retomada da solução de dois Estados (na qual um Estado israelense e um palestino coexistem em paz) como a única resposta para esse conflito de décadas.
Durante essa reunião, vários países, entre eles a própria França, mas também a Bélgica, Luxemburgo, Andorra, San Marino e Malta, vão se unir aos mais de 145 membros da ONU que já reconhecem um Estado palestino, segundo anúncio prévio do Palácio do Eliseu.
A maioria das recentes declarações europeias sobre o reconhecimento do Estado palestino é uma decorrência da campanha militar israelense em Gaza, que já matou mais de 65 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde do governo do Hamas. Na segunda-feira passada, uma comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU acusou Israel de estar cometendo genocídio em Gaza.
Israel e seu principal aliado, os Estados Unidos, rejeitaram esse relatório e quaisquer planos de reconhecer um Estado palestino com o argumento de que isso seria uma recompensa pelo terrorismo, em referência aos ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 contra Israel, liderados pelo grupo radical palestino Hamas, que resultaram na morte de quase 1.200 pessoas e precederam a campanha militar israelense em Gaza.
Apenas ‘ações performáticas’
Até mesmo os apoiadores do Estado palestino dizem que o reconhecimento é insuficiente se não for combinado com ações. “Os Estados ocidentais adotam gestos simbólicos, enquanto os palestinos ficam sem justiça e sem um Estado funcional, apenas com uma lacuna cada vez maior entre a realidade vivida e os gestos internacionais”, argumentou a ativista Ines Abdel Razek, do Instituto Palestino para Diplomacia Pública, sediado em Ramallah, num artigo para o think tank palestino Al Shabaka.
Na quarta-feira, o colunista Owen Jones, do jornal britânico The Guardian, escreveu que “todas as ações tomadas contra Israel foram performáticas, a fim de abafar os apelos por ação da opinião pública”.
Há também a questão de como Israel reagirá à nova onda de reconhecimentos. “O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tem um longo histórico de desafiar os demais membros da ONU”, escreveu o analista Richard Gowan, especialista em Nações Unidas do think tank International Crisis Group, no periódico político americano Just Security.
“Um cenário que preocupa os diplomatas é que Netanyahu – que declarou na semana passada que ‘não haverá um Estado palestino’ – possa responder ao processo de reconhecimento anunciando, em seu discurso, planos para anexar formalmente partes dos territórios palestinos.”
É evidente que o reconhecimento de um Estado palestino, por si só, não acabará com a guerra na Faixa de Gaza. “O reconhecimento é um substituto errôneo para boicotes e medidas punitivas que deveriam ser tomadas contra um país que perpetua o genocídio”, argumentou o colunista Gideon Levy no jornal israelense Haaretz em agosto. “O reconhecimento é apenas uma declaração vazia.”
Na verdade, como apontam especialistas jurídicos, trata-se de duas questões distintas. Seja a Palestina um Estado ou não, o direito internacional obriga outras nações, diante da suspeita de um genocídio, de fazerem tudo o que puderem para impedi-lo.
Simbolismo importante
O que o reconhecimento de um Estado palestino pode trazer é o fortalecimento da defesa de um cessar-fogo no âmbito das estruturas diplomáticas, burocráticas e jurídicas internacionais.
No periódico acadêmico The Cairo Review of Global Affairs, o analista político egípcio Omar Auf destacou que autoridades palestinas já haviam tentado aderir às Convenções de Genebra em 1989, mas foram rejeitadas pela Suíça porque, segundo os suíços, havia incerteza sobre a existência de um Estado palestino.
A especialista em negociações de paz Nomi Bar-Yaacov, do Centro de Política de Segurança de Genebra, disse à DW que o reconhecimento nada muda de imediato. “Mas dá aos palestinos uma participação muito maior nas negociações, porque quando se negocia Estado perante Estado não é o mesmo que negociações entre um Estado e um Estado não reconhecido ou que é apenas uma entidade”.
O reconhecimento por outros países pode ser visto como uma valorização diplomática. Quem reconhecer o Estado palestino precisa também rever suas relações com a Palestina, bem como as obrigações legais associadas. Isso pode levar a uma revisão das relações com Israel.
Tudo isso, porém, tem um caráter muito simbólico, observa o analista Hugh Lovatt, do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR). “Simbolismo não é necessariamente algo ruim. Se for considerado quem está reconhecendo – França e Reino Unido, em especial – trata-se de uma importante reafirmação dos direitos e da autodeterminação dos palestinos, do direito de viver livre da ocupação, do direito à soberania e assim por diante.”
“[O reconhecimento] deve ser visto como o percurso da viagem”, disse Lovatt. “Podemos não chegar lá amanhã, mas a trajetória está clara.”
Medidas práticas
Mas medidas simbólicas devem ser acompanhadas de medidas práticas. “Reconhecimento não é política, é um início. O verdadeiro trabalho começa no dia seguinte”, afirmou o analista político Anas Iqtait, da Universidade Nacional Australiana, num artigo para o think tank Middle East Council on Global Affairs, sediado em Doha.
Em Bruxelas, na quarta-feira passada, a chefe da diplomacia europeia, Kaja Kallas, incentivouos países-membros a aumentar as tarifas sobre alguns produtos israelenses e a sancionar colonos israelenses e dois ministros de Estado, o das Finanças, Bezalel Smotrich, e o da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, ambos da ultradireita israelense.
Essas são medidas que especialistas do ECFR já haviam recomendado. Uma fonte em Bruxelas disse à DW que a Itália, que sempre se opôs à interrupção do financiamento científico da UE para Israel, poderia abandonar suas objeções em breve.
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