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O príncipe sem carisma

Conseguirá Charles sair da sombra da mãe e preservar a monarquia após o longo reinado de Elizabeth II?

O príncipe sem carisma
O príncipe sem carisma
Imagem: Justin Tallis/AFP
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Poucos de nós se lembram de um mundo sem a rainha ­Elizabeth, ou, até recentemente, imaginavam um. Durante sete décadas, o Reino Unido e a maioria dos outros reinos da Comunidade Britânica trataram questões sobre abandonar a monarquia, ou o que esperar do sucessor, mais como devaneios mentais do que como assuntos urgentes. Seu filho mais velho, ao contrário, há muito luta com ambas as proposições e reconhece na popularidade inigualável de sua mãe um fenômeno que simultaneamente assegura seu caminho ao trono e complica seu destino singular. Nascido para preservar a coroa e transmiti-la, o príncipe Charles às vezes duvida que conseguirá alguma dessas coisas.

Ele é, como resultado e por natureza, ansioso. Vê ameaças existenciais por trás de cada tapeçaria. Auxiliares empolgados podem encorajar essa tendência. Em 2015, publiquei uma biografia na qual examinava sua estranha existência, seu personagem, ora envolvente, ora irritadiço, e as crenças surpreendentes que impulsionaram seu intervencionismo da vida inteira e incansável angariação de fundos para as instituições de caridade que ele se sentiu impelido a fundar. Assustadas com a cobertura pela imprensa de algumas revelações do livro, fontes anônimas do palácio partiram para o ataque, emitindo falsas negações sobre o acesso extraordinariamente generoso a Charles, seus amigos e funcionários que sustentaram minha pesquisa.

Esse erro de julgamento – ninguém na Clarence House havia lido o livro, e a reação foi uma publicidade mais eficaz do que eu poderia ter feito – é menor, mas revelador. A família real habita um universo paralelo, dependente de assessores e aliados para nos explicar a eles e eles a nós. O arranjo manteve a maioria dos integrantes livres de escrutínio, mas também distantes da realidade e protegidos tanto pelo desinteresse quanto pelo apoio ativo do público. As cortes são acidentes à espera de acontecer, estruturas medievais apenas parcialmente adaptadas à era moderna e chefiadas por gente que nunca, no sentido comum, teve um emprego. A punição por erros era menor numa época­ menos comunicativa e antes que uma recente série de desastres mergulhasse faixas mais amplas da população na precariedade. O olhar do público tornou-se mais implacável, mais incansável, assim como sua opinião. Mesmo assim, se os Windsor desejarem ver os maiores perigos para a sobrevivência da monarquia, basta se olharem no espelho.

Se os Windsor desejarem ver os maiores perigos para a sua sobrevivência, basta se olharem no espelho

Os últimos anos – os anos de Meghan e Harry, os de Andrew e Jeffrey ­Epstein, os de dinheiro por honras e acesso, os anos de fragmentação e fratura familiar – atingiram a instituição como uma bola de demolição. Considere o trio de ameaças que os conselheiros de Charles consideravam, até essa onda de ferimentos autoinfligidos, um “cenário de pesadelo” para o início bem-sucedido de seu reinado. Eles morderam os dedos diante da possibilidade de que a ­Comunidade de Nações pudesse escolher alguém além dele como próximo líder da organização. Temiam que o fracasso em concordar com o futuro título de sua segunda esposa antes de sua ascensão – princesa ou rainha consorte – levantasse o fantasma de sua primeira esposa. Temiam que um reino caribenho inquieto pudesse aproveitar o momento de transição para se tornar uma república.

Quão insignificantes parecem agora essas duas primeiras preocupações, ambas rapidamente resolvidas – e quão dolorosamente esses assessores reais subestimaram a terceira. Barbados não se preocupou em esperar por um novo soberano e rompeu com a coroa no ano passado. Seis dos reinos caribenhos restantes sinalizaram o desejo de seguir o exemplo. O doloroso percurso dos duques de Cambridge, William e Kate, pela região em março provocou consternação nos palácios reais, mas muito pouca compreensão para se mudar a chocante coreografia de uma expedição semelhante dos ­Wessex – o príncipe Edward e a esposa, Sophie – no mês seguinte. Os manifestantes em todas as etapas apontaram as maneiras como a realeza é beneficiada em termos econômicos e sociais pelo império e a desigualdade, a escravização e a exploração. Nenhum dos oficiais do palácio envolvidos no planejamento das viagens parecia ter entendido como essa herança se entrelaça com Windrush e outras narrativas mais recentes de injustiça, seja de vidas negras extintas pela polícia que ­deveria ­protegê-las ou de uma mulher de cor esmagada e desrespeitada pela instituição a cujo serviço seus sogros viajaram.

Prestígio abalado. O jubileu do reinado de Elizabeth animou as ruas de Londres, mas a família real está mergulhada em escândalos mundanos e mágoas infindas – Imagem: The Royal Family e Andrew Parsons/Number 10

Meghan, como Diana, não foi silenciosamente, mas os integrantes da realeza restantes parecem não compreender a escala das consequências da partida dos Sussex. Em vez disso, ainda discutem sobre lembranças que na verdade diferem. Ao escrever uma nova seção substancial de minha biografia de Charles, pareceu importante desfazer as reivindicações e contra-alegações desse conflito, mas não à custa da imagem maior. Seja qual for a verdade em que você venha a acreditar, o dano, pessoal e institucional, é profundo.

Conhecidos de Harry relatam que o rompimento com sua família o deixou arrasado, e ele não é o único a sofrer. Seu irmão, William, está muito ferido, diz uma dessas fontes, e sua angústia se expressa, como tem feito desde a perda de sua mãe, como fúria. Outra fonte fala da “dor muito profunda” de Charles.

William e Kate parecem irremediavelmente maculados aos olhos de seções significativas de seus potenciais futuros súditos no Reino Unido, bem como nos reinos estrangeiros, e esse não é de forma alguma o único legado do afastamento. Quem sabe o que as memórias de ­Harry, esperadas para o fim deste ano, causarão – e seu pai tem muito a temer. A óbvia afeição de Charles por seus meninos e a felicidade radiante com Camilla começaram a torná-lo querido pelo público. Essa imagem tem sido tisnada no momento em que escândalos mais antigos voltam à baila. A entrevista de seu irmão Andrew a Emily Maitlis, da BBC, não foi apenas um gol contra. Ele revelou a cumplicidade da realeza em continuar a fornecer um porto acrítico, apesar da associação de Andrew com um pedófilo condenado e das acusações de agressão sexual feitas por Virginia Giuffre. No funeral do príncipe Philip, a rainha sentou-se encurvada e sozinha em seu banco para um serviço de Estado reduzido pelas precauções da Covid a dimensões mortais – um ícone de dor e dignidade. Na época do memorial maior de seu marido, a atenção concentrou-se na presença chocante de Andrew ao lado dela e nas implicações prejudiciais de dar a ele tal destaque.

Charles é uma figura polarizadora em um mundo cada vez mais polarizado

Como rei, é provável que Charles receba muito mais presentes caros, mas também se beneficiará diretamente da verba soberana anual, destinada ao cumprimento dos deveres de chefe de Estado. Tais deveres serão seu foco. Seus dias de tentar obter financiamento para seu império de caridade dos doadores ricos que sua equipe chama de “vilões de Bond” deveriam ter acabado. “Claramente, não poderei fazer as mesmas coisas que fiz como herdeiro, então é claro que você opera dentro dos parâmetros constitucionais”, declarou ele em um documentário da BBC sobre seu 70º aniversário.

O perigo para ele – e a monarquia; essas coisas são indivisíveis – é que sua história é cravejada de munições não detonadas. Na nova edição da minha biografia de Charles, revisito um pequeno jantar privado de angariação de fundos do qual participei em 2013 na Dumfries House, uma mansão na Escócia transformada numa base para suas caridades e iniciativas. Sete convidados naquela noite, apoiadores existentes ou potenciais, seriam posteriormente envolvidos em notícias sobre contravenções, criminais ou não. Isso não quer dizer que os convidados foram culpados de impropriedade, mas que o rei Charles será julgado não apenas por suas decisões futuras, mas por associações e ações passadas. Estas incluem sua decisão de renomear e promover seu ex-camareiro ­Michael Fawcett a cargos cada vez mais altos, apesar de duas renúncias e controvérsias em série. Como então executivo-chefe da Dumfries House, Fawcett presidiu o jantar de 2013. No fim do ano passado, ele renunciou a todos os seus cargos reais, desta vez em meio a denúncias de que solicitou uma doação de caridade em troca da promessa de um título de cavaleiro. Em fevereiro, a Scotland Yard lançou uma investigação sob a Lei de Honras (Prevenção de Abusos) de 1925.

Charles permanece uma figura polarizadora que tenta navegar em um mundo cada vez mais polarizado. O principal papel de um chefe de Estado é unificar. Esse poderá ser um trajeto acidentado. •


Extraído de Charles: The Heart of a King, de Catherine Mayer, nova edição publicada por WH Allen em 25 de agosto de 2022, 10,99 libras.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O príncipe sem carisma”

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