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O plano B

Kamala Harris faz a ponte entre Joe Biden e o eleitorado democrata descontente

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Sobram os espinhos. A vice tem sido escalada para tratar dos temas que convém a Biden evitar – Imagem: Shawn Thew/Pool/AFP
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De pé no arco da Ponte ­Edmund Pettus em Selma, no Alabama, para comemorar o 59º aniversário do Domingo Sangrento, as marchas em 1965 pelos direitos civis dos negros que conduziram à aprovação da Lei dos Direitos ao Voto, Kamala Harris disse sentir-se obrigada a iniciar suas declarações sobre o agravamento da catástrofe humanitária em Gaza. “A população está morrendo de fome. As condições são desumanas. E a nossa humanidade comum nos força a agir”, afirmou a vice-presidente dos Estados Unidos. “Diante da imensa escalada do sofrimento em Gaza, é preciso haver um cessar-fogo imediato.” Seguiram-se aplausos fortes e demorados e, após uma pausa, ela acrescentou: “Durante ao menos seis semanas”.

A Casa Branca rapidamente declarou que os comentários reforçaram aqueles pronunciados dias antes pelo presidente Joe Biden e refletiam os atuais esforços do governo para mediar uma pausa temporária na ofensiva de Israel que permita a libertação dos reféns e a entrada da ajuda humanitária desesperadamente necessária no território sitiado. Entretanto, muitos norte-americanos furiosos com Biden por sua aliança com Israel ouviram de Harris o que sentem faltar no presidente.

Havia uma urgência no discurso da vice, proferido nas pegadas dos manifestantes por direitos civis pisoteados, atacados com gás lacrimogêneo e espancados com chicotes e cassetetes quando tentaram atravessar a ponte, que reverberou. O ambiente parecia reconhecer o movimento de jovens furiosos com o presidente, que veem os direitos dos palestinos como uma extensão do movimento por justiça racial. Harris criticou enfaticamente Israel por restringir o fluxo de ajuda a Gaza e expressou compaixão pelos civis que vivem entre escombros, a passar fome.

A vice tem sido contundente na crítica a Israel e na defesa do direito ao aborto

Com o início da disputa das eleições gerais de 2024, Harris surge como uma emissária dos eleitores democratas irritados com Biden. Nos últimos meses, ela embarcou numa ampla caravana nacional para destacar as ameaças aos direitos reprodutivos que viriam com um segundo governo de Donald Trump, questão sobre a qual Biden é acusado de se esquivar. Agora, à medida que Harris adota um tom mais firme sobre Gaza, também se torna uma voz de liderança na diplomacia para o Oriente Médio.

Ambos os temas deverão desempenhar um papel importante, e até decisivo, nas eleições em novembro. As pesquisas mostram um desgaste do apoio entre os principais círculos eleitorais democratas em meio à desilusão generalizada com a economia, à preocupação com a idade de Biden e à fúria da esquerda pela atuação do governo sobre a guerra em Gaza. Para os democratas, lembrar os eleitores da ameaça representada pelos republicanos ao direito ao aborto talvez seja a melhor forma de energizar os jovens e, ao mesmo tempo, conquistar as mulheres independentes e de classe média. A indignação sobre a abolição da Lei Roe, que autoriza o aborto em certas condições, teria interrompido a prometida “onda vermelha” de vitórias republicanas nas eleições intermediárias de 2022. Referendos relacionados ao aborto também triunfaram repetidamente, mesmo em estados tradicionalmente republicanos como Kansas, Kentucky e Ohio.

Harris tem, porém, um trabalho difícil pela frente. Tal como Biden, ela foi vista de modo desfavorável durante grande parte de seu mandato. Antonio ­Arellano, porta-voz do NextGen, um programa nacional de educação e registro eleitoral apartidário voltado para jovens, chamou Harris, de 59 anos, de “ligação” entre o governo e as partes da base democrata essenciais para a vitória em 2020. Harris, com sua turnê aos campi universitários e sobre os direitos reprodutivos, ajudou a salientar temas prioritários para jovens progressistas e eleitores multirraciais, disse. “Ela traz uma energia de vigor e animação para a eleição que realmente pode atrair os jovens quando faltar entusiasmo em outros lugares.”

Harris entrou na guerra do aborto um dia após a divulgação da decisão da Suprema Corte que aboliu a decisão de Roe vs. Wade. Em maio de 2022, numa conferência para a Emilys List, organização que trabalha para eleger mulheres democratas que apoiam o direito ao aborto, fez um discurso inflamado em que perguntou repetidamente: “Como eles se atrevem? Como se atrevem a dizer a uma mulher o que ela pode ou não fazer com seu próprio corpo?”, questionou. “Como ousam tentar impedi-la de determinar seu próprio futuro? Como se atrevem a tentar negar às mulheres seus direitos e suas liberdades?”

A vice-presidente passou os primeiros meses do mandato frustrada com as manchetes sobre sua aparente desorientação, saídas de funcionários e erros ­espontâneos. Aliados e especialistas há muito veem o sexismo e o racismo no escrutínio público de Harris, a primeira mulher e primeira negra a ocupar um cargo eleito nacionalmente. As críticas pareciam particularmente injustas, disseram, pois historicamente os vice-presidentes são ignorados. “Não estou dizendo que não deveriam ter dado atenção à gestão, especialmente quando você vê demissões e contratações de alto nível”, disse Andra Gillespie, professora associada de Ciência Política no Emory College. “Mas acho que ainda há a questão de se prestaram ou não mais atenção nela, e também se o público teve ou não uma reação mais visceral por causa de sua raça e seu gênero.”

Comparado à sua companheira de chapa, o histórico recente do presidente Biden em termos de aborto é muito menos regular. Um católico devoto, Biden disse que “não é muito a favor” e, no discurso sobre o Estado da União no último dia 7, falou longamente sobre o procedimento, sem nunca o chamar pelo nome. Em vez disso, usou o termo “liberdade reprodutiva” e prometeu “restaurar a Roe vs. Wade como lei do país”.

Vozes roucas. Parte do eleitorado democrata se incomoda com o apoio incondicional do presidente a Israel e sua tibieza na defesa dos direitos reprodutivos – Imagem: AFP e Victoria Pickering

Em relação a Gaza, Harris começou a assumir um papel mais visível, e parece que aqui também pode ter ido um pouco além da zona de conforto de Biden. A NBC News informou que o Conselho de Segurança Nacional atenuou partes do discurso de Harris em Selma que eram “mais duras” sobre Israel. O gabinete da vice negou que o discurso tenha sido sua­vizado. Na segunda-feira após seus comentários, Harris encontrou-se com Benny Gantz, integrante do gabinete de guerra de Israel que viajou a ­Washington contra a vontade do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Ao entrar na reunião, a vice negou qualquer diferença entre ela e o presidente sobre o conflito. “O presidente e eu estivemos alinhados e consistentes desde o início.”

Para muitos ativistas antiguerra, os comentários de Harris sobre Gaza foram muito curtos e tardios. Outros encararam como um sinal de progresso. Quase 100 mil democratas em Michigan votaram descomprometidos nas primárias, que ocorreram poucos dias antes de seus comentários. “Eles estão sentindo a pressão e queremos que a sintam”, disse Khalid Omar, que trabalhou para a campanha “descomprometida” em ­Minnesota. “Queremos que eles saibam que isso é inaceitável.”

O primeiro evento de campanha conjunto de Biden e Harris em 2024, um comício na Virgínia, pretendia enfocar os direitos reprodutivos, mas foi prejudicado pela revolta sobre o conflito em Gaza. Depois de Harris e uma mulher do Texas a quem foi negado o aborto falarem sobre a importância de defender o procedimento, Biden subiu ao palco. Foi quase imediatamente interrompido por uma manifestante que gritou: “Joe do genocídio, quantas crianças você matou em Gaza?… A Palestina é uma questão feminista”. A manifestante foi retirada do auditório. Outra logo gritou: “Israel mata duas mães por hora”.

Observadores da Vice-Presidência dizem que a atenção recente é o reconhecimento do trabalho realizado há meses em questões de política interna e externa. “Na medida em que ela encontrou sua voz, é porque finalmente a estão escutando”, afirma Donna Brazile, aliada de Harris e antiga estrategista democrata que leciona estudos sobre mulheres e gênero na Universidade de Georgetown.

No mês passado, Biden enviou Harris à Conferência Sobre Segurança em Munique com a missão de tranquilizar os aliados abalados pelos ataques de Trump à Otan. Lá ela encontrou-se com o presidente ucraniano, Volodymir Zelensky, e com Yulia Navalnaya, esposa do líder de oposição russo Alexei Navalny, horas após a notícia da morte do marido em uma colônia penal no Ártico. Menos de uma semana depois, Harris estava em Grand ­Rapids, em Michigan, numa escala em sua turnê pelos direitos reprodutivos. Lá, fez uma parada de surpresa na primeira loja de discos de vinil de propriedade de uma mulher negra na cidade e comprou um álbum de Miles Davis da proprietária, que ficou emocionada com a visita.

A idade avançada de Biden leva os analistas a prestarem mais atenção em Harris

Quando a administração do Tennessee­ expulsou dois legisladores negros, a Casa Branca enviou Harris para Nashville, onde ela se juntou a eles para apresentar um apelo emocionante pelo controle de armas. Em dezembro, viajou a Dubai para uma cúpula da ONU sobre o clima, onde fez malabarismos com a diplomacia de tempo de guerra – proferindo os comentários mais contundentes de qualquer integrante do governo norte-americano sobre a guerra de Israel em Gaza – e a política climática. “Sua Vice-Presidência tem sido importante tanto em seu papel de porta-voz quanto em uma série de atribuições diplomáticas significativas e de grande visibilidade”, avalia ­Joel Goldstein, historiador da Vice-Presidência dos Estados Unidos.

Há, porém, outra razão pela qual o escrutínio sobre Harris pode estar se intensificando: a idade de seu companheiro de chapa. Se vencer um segundo mandato, Biden completará 86 anos antes de deixar o cargo. Uma pesquisa de The New York Times e do Siena College apontou que 73% dos eleitores registrados acreditam que Biden está “velho demais” para ser um presidente eficaz. A pesquisa foi realizada mais de duas semanas depois de um advogado o descrever como um “homem idoso e bem-intencionado, com memória fraca” e “faculdades diminuídas pela idade avançada”. “A idade de Biden e de Trump concentrará mais atenção nos candidatos à Vice-Presidência”, disse Goldstein.

Os republicanos têm procurado alavancar as preocupações sobre a saúde física e mental de Biden contra Harris, classificando-a como instável e despreparada para assumir a Presidência. Semanas antes de abandonar as primárias presidenciais republicanas, Nikki Haley argumentou que se Trump ganhasse a nomeação do partido perderia para Biden, que não conseguiria terminar um segundo mandato, levando Harris à Presidência. Essa perspectiva, segundo Haley, “deveria causar arrepios na espinha de todos”.

Harris tem, no entanto, se inclinado para o papel de liderança. Depois do Estado da União, ela rumou para o Arizona em sua viagem pelos direitos reprodutivos. No sábado 9, faria campanha com cabos eleitorais latinos no estado decisivo de Nevada. “Estou pronta, se necessário”, disse à NBC News na sexta-feira 8. “Mas não será necessário.” •


*Colaborou Rachel Leingang, de Minneapolis.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O plano B’

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