Mundo
O ódio será sua herança
Donald Trump, que não se cansa de disseminar a histeria coletiva, esteve novamente na mira de um atirador


Uma nova tentativa de assassinato. O mesmo alvo e mais uma vez falhas grotescas do serviço secreto. As eleições dos Estados Unidos estão marcadas por uma sucessão de bizarrices, apimentadas por teorias da conspiração, xenofobia, mentiras, troca de candidato aos 45 minutos do segundo tempo e, como se fosse pouco, ameaças de bomba e duas tentativas de homicídio do ex-presidente Donald Trump.
A primeira, em 13 de julho, durante um comício na Pensilvânia, deixou dois mortos, incluindo o autor dos disparos, e atingiu de raspão a orelha do candidato republicano. A segunda, no domingo 15, enquanto Trump jogava golfe com amigos em seu clube, na Flórida. O suspeito, Ryan W. Routh, de 58 anos, não chegou a atirar, mas estava a menos de 400 metros do ex-presidente. Foi descoberto quando um agente que patrulhava o local avistou um cano de rifle a sair de uma cerca na direção de Trump.
Routh escapou dos tiros dos seguranças, mas acabou detido 45 minutos depois e, sem reagir, disse aos policiais que sabia o motivo da prisão. Além de um rifle semiautomático com mira, estilo AK-47, e duas mochilas recheadas de ladrilhos de cerâmica penduradas na cerca, os investigadores do FBI encontraram uma câmera de vídeo, e disseram acreditar que o suspeito pretendia filmar o ataque.
Cinco dias antes, Trump havia afirmado no primeiro e provavelmente único debate com Kamala Harris que imigrantes haitianos comiam cães e gatos em Springfield, em Ohio. No dia seguinte, ameaças de explosão em escolas e prédios públicos dispararam na cidade de pouco mais de 58 mil habitantes e deixaram a comunidade em pânico. Mais agressivo, xenófobo e desagregador do que nas eleições anteriores, o republicano elevou a outro patamar a histeria coletiva. Não espanta, portanto, os efeitos colaterais da retórica agressiva.
Pouco se sabe, até o momento, sobre Routh. Em 2023, em entrevista ao The New York Times, o atirador afirmou-se disposto a lutar e morrer na Ucrânia. Em postagens em redes sociais, revelou ter votado em Trump em 2016, mas se arrependido. Classificou a escolha como “erro terrível”. Neste ano, apoiou a chapa republicana Nikki Haley–Vivek Ramaswamy. Nos últimos anos, tinha como moradia no Havaí um automóvel. Empreiteiro de construção civil com extensa ficha criminal, foi descrito pelo filho, Oren, como um “um bom pai e um trabalhador esforçado a vida toda”. Na segunda-feira 16, durante audiência de oito minutos, os promotores o enquadraram em duas acusações: posse de arma de fogo por um criminoso condenado e posse de arma de fogo com número de série raspado. Investigadores ainda não sabem como o suspeito descobriu a localização de Trump e se ele teria agido sozinho.
As perguntas não param por aí. Dez dias após o primeiro ataque, a então diretora da agência de segurança, Kimberly Cheatle, não resistiu à pressão de republicanos e democratas e renunciou ao cargo. À época, um comunicado afirmava que o órgão empenhado em descobrir “o que aconteceu, como aconteceu e como podemos evitar que um incidente como esse aconteça novamente”. Pelo visto, o esforço não saiu do papel. Se em julho agentes do serviço secreto identificaram o atirador Routh, o suspeito, declarou-se arrependido de votar no republicano Thomas Matthew Crooks antes mesmo de os tiros serem disparados, mas falharam em contê-lo, agora a equipe deslocada para proteger o ex-presidente admitiu não ter feito uma varredura na área onde Trump estava e o suspeito, acredita-se, ficou à espreita por quase 12 horas. De acordo com seguranças, o ex-presidente teria comunicado a decisão de jogar golfe em cima da hora e por isso não houve tempo hábil de vistoriar o local.
Segundo o The New York Times, o diretor interino da agência, Ronald Rowe Jr., se reuniu com Trump e sua equipe de campanha 24 horas após o ataque. Sob clima tenso e muita pressão, Rowe foi questionado pelo próprio ex-presidente se era seguro para continuar a jogar golfe. O diretor explicou as dificuldades de proteger campos extensos perto de estradas públicas e que seriam necessários arranjos e planejamento de segurança adicionais significativos se ele quisesse continuar a manter a rotina.
Como todo ex-presidente, Trump tem direito de receber proteção. Na segunda 16, enquanto falava com repórteres do lado de fora da Casa Branca, Biden disse que “o serviço secreto precisa de mais ajuda” e acrescentou que pediu ao Congresso mais recursos à agência. Em um post no X no domingo 15, Harris declarou-se “profundamente perturbada” com o episódio. “À medida que reunimos os fatos, serei clara: condeno a violência política. Todos nós devemos fazer a nossa parte para garantir que este incidente não leve a mais violência”. Na terça-feira 17, a candidata democrata foi, porém, mais firme e, durante encontro com integrantes da National Association of Black Journalists disse ter total confiança no serviço secreto e se sentir segura. Ressaltou ter o privilégio da proteção do governo e “uma sensação de segurança que não se estende a comunidades vulneráveis, como Springfield, e mulheres que perderam seus direitos reprodutivos”.
Mais tarde, durante um comício em Michigan, na noite da terça-feira 17, Trump reforçou que o incidente não o afetou, mas que os eleitores “fazem essa pergunta com frequência, e eu tento não pensar nisso”. Disse também que tanto o presidente Joe Biden, como a vice-presidente Kamala Harris foram “muito gentis” em suas ligações. “Ele foi tão legal comigo. De certa forma, eu meio que queria que a ligação não tivesse sido feita porque eu me sinto um pouco… ele é tão legal. Sinto muito pelo que aconteceu e tudo isso. O mesmo com Kamala. Ela não poderia ter sido mais simpática.”
Seu companheiro de chapa, JD Vance, ainda não parece ter entendido o que se passa no país. Ao lado de Trump, encorajou a violência e insistiu que os líderes democratas são responsáveis por estimular as tentativas de assassinato do ex-presidente. “Com quase 500 patriotas no estado de Michigan neste prédio agora e do lado de fora, eu gostaria de ver um assassino tentar entrar nesta sala. Eles vieram ao lugar errado se você tentar entrar neste lugar agora.” •
Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ódio será sua herança’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.