Mundo

cadastre-se e leia

O novo timoneiro

O Congresso do Partido Comunista consagra Xi Jinping como o líder chinês mais poderoso desde Mao

Poder. Jinping fala aos delegados do partido, que lhe garantiram um terceiro mandato. Depois de afastar dissidentes e mudar regras, o atual líder chinês evoca Mao Tsé-tung - Imagem: Collection Roger-Viollet/AFP e Noel Celis/AFP
Apoie Siga-nos no

Xi Jinping presidiu nesta semana um dos grandes espetáculos de teatro político de seu país e selou um triunfo há muito planejado: consolidar seu poder e prolongar seu governo. O Partido Comunista Chinês decidiu entregar formalmente a ­Jinping por mais cinco anos a chefia do partido e, portanto, a liderança do país, em uma cúpula que também levou os aliados a papéis-chave e aumentou a importância dos escritos sobre poder e governo. O 20º Congresso da legenda o confirmou como o homem mais poderoso da China desde Mao Tsé-tung.

É um precedente desconfortável. Após a morte de Mao, a elite chinesa prometeu nunca mais permitir tal concentração de poder e estabeleceu um sistema oficioso de liderança coletiva, limites de mandato e uma idade de aposentadoria para altos cargos. Facilitou transferências suaves de poder, até Jinping assumir e varrer essas normas. Filho de um vice-primeiro-ministro, um dos descendentes “príncipes vermelhos” da elite comunista, sua infância dourada foi convulsionada pela queda do pai em desgraça, depois pela violenta comoção da Revolução Cultural. Enquanto manobrava em direção ao poder supremo, muitos na China e em outros lugares esperavam que ele tivesse herdado algumas das perspectivas relativamente liberais de seu pai, e que as experiências marcantes de seus primeiros anos o tivessem inoculado contra o totalitarismo.

Em vez disso, o caos inicial parece ter instilado um desejo irresistível de estabilidade e controle acima de tudo, juntamente com uma convicção inabalável de que ele é o melhor homem para dar isso a toda a China. Ao longo de dez anos como líder, Jinping reforçou seu poder pessoal sobre o Partido Comunista e o controle do partido sobre o país. Eliminou rivais e inimigos por meio de expurgos anticorrupção e reprimiu a dissidência de base ao reforçar a censura e a vigilância. Hong Kong, outrora base para os críticos de Pequim, perdeu suas liberdades democráticas de expressão e reunião, depois que o líder encerrou seu status semiautônomo. Sob seu governo, as autoridades de ­Xinjiang criaram uma vasta rede de campos de internação, com detenção indefinida, tortura e outros abusos que, segundo a ONU, podem ser considerados “crimes contra a humanidade”.

Jinping ganha mais cinco anos de mandato e estende sua influência pela estrutura burocrática

Mais de 2 mil delegados na reunião representavam quase 100 milhões de filiados do partido e tomaram decisões formais sobre pessoal e planos para a próxima meia década. Na realidade, os delegados foram escolhidos a dedo para carimbar o novo mandato de Jinping e endossar uma agenda e uma nova equipe de alta liderança amplamente definida em meses de disputas nos bastidores. O governo paralisou Pequim e prendeu dissidentes para tentar impedir que as reuniões cuidadosamente coreografadas fossem interrompidas, mesmo que ligeiramente, mas um único manifestante conseguiu desafiar os controles de segurança, incendiar uma ponte e pendurar uma faixa de protesto.

Mesmo que o resultado seja quase uma conclusão precipitada, a demonstração de poder e a pretensão de unidade são politicamente vitais para Jinping e o partido. “Você poderia dizer que o congresso é principalmente teatro, mas não é apenas teatro, e é extremamente importante”, afirma Holly Snape, especialista em política chinesa na Universidade de ­Glasgow. “Isso envolve uma quantidade enorme de controle coordenado. Mesmo um líder poderoso precisa obter ‘consenso’ (seja ele teatral ou um acordo genuíno) no partido. Este é o momento em que esse ‘consenso’ e, portanto, a ‘legitimidade’ são confirmados e anunciados publicamente.”

O Congresso não foi apenas um endosso da continuidade do governo, mas o momento em que se apresentará a visão para o futuro da China. A política da elite chinesa é opaca e raros discursos como esse oferecem um vislumbre vital de para onde Jinping espera que seu país caminhe. Um dos temas nos últimos anos tem sido o “grande rejuvenescimento” da China. Como parte disso, ele provavelmente oferecerá mais esforços sobre o meio ambiente, particularmente para o desenvolvimento rural equilibrado, uma virada econômica para longe do desenvolvimento imobiliário e pelo avanço da tecnologia. Também robusteceu uma abordagem mais agressiva no cenário internacional, incluído o fim abrupto da forma de autonomia limitada de Hong Kong, a militarização do Mar da China Meridional e a ameaça declarada a Taiwan. Na ilha, governada democraticamente, crescem os temores de que Pequim pensa em desistir de um compromisso de longo prazo com a “reunificação pacífica”. “Jinping cumprirá ao menos três mandatos completos”, disse Victor Shih, professor de ­Ciência Política da Universidade da Califórnia, em San Diego. “O grande rejuvenescimento foi um dos temas do congresso do partido que, obviamente, tem repercussões na economia. A China terá de continuar a crescer e militarmente tem de se fortalecer, tem de ser uma potência cada vez mais influente no mundo. Assim, nos perguntamos se haverá uma mudança de discurso em relação a Taiwan.”

Futuro. A China enfrenta o desafio de tornar o desenvolvimento mais inclusivo e menos danoso ao meio ambiente – Imagem: iStockphoto

A entrada de Jinping nos livros de história com um terceiro mandato vem num momento desafiador. Embora sua posição pessoal tenha se fortalecido constantemente nos últimos dez anos, as fortunas da China não seguiram uma trajetória ascendente tão clara. Sua consolidação de poder veio com um sério risco para as finanças nacionais combalidas, avalia Sung Wen-Ti, cientista político na Universidade Nacional Australiana. “Outro mandato de cinco anos de Xi provavelmente significará maior controle estatal da economia híbrida e a continuação de uma abordagem de ‘terra arrasada’ para manter a Covid-zero por muito mais tempo do que outros países.”

A economia foi prejudicada pela pandemia global e pelo isolamento internacional causado pelo compromisso pessoal de Jinping de manter a Covid fora, mesmo que outros países se acostumem a conviver com a nova doença. Também foi enredada pelo excesso de burocracia de um partido que busca reforçar o controle e minada pelo enfraquecimento das relações com um mundo até pouco tempo muito mais dependente das fábricas e dos produtos chineses.

As preocupações com os direitos humanos espalharam-se por algumas cadeias de suprimentos e levaram as empresas a explorar a fabricação em outros lugares. A mudança climática afeta gravemente a China. E um setor imobiliário sobrecarregado parece caminhar para um colapso. Pequim deixou claro que a centralização e o controle permanecerão no centro da política na “nova era”, que as preocupações políticas sobre a Covid vêm antes do crescimento econômico e é improvável que a nova equipe política conteste Jinping tanto quanto as autoridades de saída. “Nessa conjuntura, os novos formuladores de políticas econômicas e financeiras mais prováveis serão os protegidos do líder, e muitas vezes seus ex-secretários”, disse Sung. “Eles têm relativamente pouca base de poder independente fora do patrocínio de Jinping e, portanto, são fortemente incentivados a exibir lealdade, mais que independência, levando a um ciclo fechado de feedback e a um aparato de formulação de políticas com capacidade mais fraca de correção de curso antes que consequências políticas desastrosas se manifestem.”

A China enfrenta os desafios da mudança climática e do fortalecimento como potência mundial

A China, provavelmente, permanecerá isolada do mundo ao menos até o próximo verão, quando está programada para sediar os Jogos Asiáticos. Seria necessária alguma abertura para que eles seguissem em frente, com regras de Covid-zero que, provavelmente, espantarão treinadores e atletas. Os analistas estarão atentos para ver se Jinping se afasta da linguagem dos relatórios de trabalho anteriores, que prometiam buscar uma resolução pacífica para a “questão de Taiwan”. Deixar de fora a referência à busca de um pacto pacífico seria um sinal claro de que ele considera seriamente opções bélicas. “O vocabulário empregado nos discursos oficiais será um importante indicador do clima em relação a Taiwan”, acredita Alessio Patalano, professor de Guerra e Estratégia no Leste da Ásia, no King’s College London.

Trazer Taiwan de volta ao controle de Pequim é “absolutamente um assunto pessoal” para o líder chinês. A província de Fujian, onde passou a maior parte de duas décadas, fica do outro lado do estreito de Taiwan. Existem ligações comerciais e pessoais, e é a linha de frente física. “Sua formação política significava que, como líder nacional, ele abordava a reunificação com Taiwan com confiança. Hoje, essa confiança é uma fonte de vulnerabilidade à medida que cresce a dúvida sobre a reunificação pacífica”, acrescenta Patalano.

Provocação. A visita de Nancy Pelosi a Taiwan ainda ecoa em Pequim – Imagem: Gabinete da Presidência de Taiwan

Apesar de a China despejar enormes quantias de dinheiro na modernização de suas forças armadas, analistas estrangeiros acreditam que ela ainda não é capaz, em termos técnicos ou estratégicos, de tomar Taiwan à força. Um desembarque anfíbio numa ilha bem protegida está entre as manobras militares mais ambiciosas, que exigem estreita coordenação entre meios aéreos, terrestres e marítimos. Mas Pequim se aproxima do momento em que será possível. No início deste ano, o vice-diretor da CIA, ­David Cohen, disse que, embora os líderes da China, particularmente Jinping, prefiram uma rota sem derramamento de sangue para controlar Taipé, eles querem que os militares sejam capazes de tomar Taiwan até 2027. Os militares e a inteligência da ilha não apenas ouviram o discurso de Xi em busca de pistas sobre seus planos para a ilha, mas também analisarão novas nomeações para a Comissão Militar Central. Os recentes exercícios militares chineses a visar Taiwan após uma visita da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, foram preocupantes.

Nem todos na elite ficaram felizes com a postura agressiva de Jinping em relação a Taiwan, ou com a abordagem absolutista do controle do partido, mas é improvável que o descontentamento seja visto pelo público, avalia Holly Snape. “O partido considera a ‘disciplina partidária’ primordial. As regras impedem qualquer expressão pública de dissidência ou desacordo. O custo de ser percebido ou pintado como infringindo as regras é muito alto.” Isso não significa que Jinping tenha a garantia de governar por toda a vida se ganhar outro mandato, mas sua ascensão enfraqueceu a legenda. “Uma coisa que incomoda o partido não é apenas o controle da dissidência, mas o relativo empobrecimento da discussão”, prossegue Snape. “Houve um movimento ­real em direção a um maior debate e discussão política na elite dominante, mesmo que tenha permanecido um processo opaco para quem está fora. Agora, seguir essa linha se tornou primordial.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O novo timoneiro”

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo