Mundo

assine e leia

O misterioso sumiço dos registros telefônicos de Trump no dia da invasão do Capitólio

O que o ex-presidente tenta esconder está no centro da investigação do comitê da Câmara sobre a insurreição de 6 de janeiro

O misterioso sumiço dos registros telefônicos de Trump no dia da invasão do Capitólio
O misterioso sumiço dos registros telefônicos de Trump no dia da invasão do Capitólio
Tum... tum... tum. Com quem e sobre o quê o então presidente falou nas horas mais tensas de 6 de janeiro? - Imagem: Tasos Katopodis/Getty Images/AFP e Shealah Craighead/Casa Branca Oficial
Apoie Siga-nos no

Às 14h26 de 6 de janeiro do ano passado, Donald Trump pegou um telefone na Casa Branca e ligou para Mike Lee, o senador republicano de Utah. A comunicação ocorreu num momento muito significativo. Trinta e sete minutos antes, um motim havia sido declarado pela polícia de Washington. Minutos depois, o então vice-presidente, Mike Pence, foi retirado às pressas do plenário do Senado, onde presidia a certificação pelo Congresso da vitória de Joe Biden nas eleições de 2020, e colocado num esconderijo.

Quinze minutos antes de Trump fazer a ligação, seus apoiadores, exortados pelo presidente em exercício a “lutar como o inferno” contra o que ele falsamente alegou ser uma eleição fraudada, quebraram uma janela na fachada sul do Capitólio e entraram no coração da democracia americana.

Quando se procuram, no entanto, detalhes gravados da ligação de Trump às 14h26 – que foi feita, como revelou Hugo Lowell, do The Guardian, em um telefone fixo oficial da Casa Branca –, não são encontrados em lugar nenhum. A ligação para Lee foi feita de um número desconhecido usado por Trump durante um misterioso intervalo de 7 horas e 37 minutos que existe nos registros de chamadas – precisamente o período de tempo do ataque ao Capitólio.

Essa falta de registros de ligações, divulgada por The Washington Post e CBS News, levanta várias questões importantes: como os registros desapareceram? Quem fez a remoção? Mas nada mais urgente que isto: o que Trump estava tentando esconder?

“Uma lacuna como essa não acontece por acaso. Não é uma coincidência”, disse Charlie Sykes, colunista do jornal conservador Bulwark, resistente a Trump. “Não há explicação inocente aqui. Alguém tomou a decisão de rasgar o registro das horas cruciais de 6 de janeiro, e tem de haver uma razão.”

O que Trump tenta esconder está no centro da investigação do comitê da Câmara sobre a insurreição de 6 de janeiro. O ex-presidente sempre procurou bloquear as informações que fluíam para o comitê – pressionando seu círculo íntimo a não testemunhar, rasgando documentos antes de serem entregues. As apostas na disputa sobre evidências aumentaram acentuadamente quando um juiz federal disse em uma decisão que Trump “provavelmente (…) conspirou desonestamente para obstruir” o Congresso em 6 de janeiro. Isso seria um ato criminoso.

Nunca houve dúvida de que Trump inspirou seus apoiadores a atacar ­Washington naquele dia fatídico, nem que os encorajou a protestar nos moldes da “grande mentira” de que a eleição foi roubada. Três semanas antes da insurreição, ele tuitou: “Grande protesto em D.C. (Distrito de Colúmbia) em 6 de janeiro. Esteja lá, será selvagem”. Mas Trump é um mestre do passado em fazer comentários ultrajantes ao mesmo tempo que disfarça ou deixa ambíguas suas reais intenções. O que exatamente ele quis dizer com “será selvagem”? Até que ponto ele estava preparado para conduzir essa proposta? Criticamente, os registros de ligações ausentes que cobrem o período de tempo da insurreição ofereceriam pistas sobre sua motivação?

Sem as conversas desaparecidas, os investigadores encontram dificuldades para ligar o ex-presidente à tentativa de golpe

Uma ligação que se sabe que Trump fez no buraco negro das horas perdidas entre 11h17 e 18h54 foi para Pence. No fim do dia 6 de janeiro, o presidente em exercício fez uma última tentativa de convencer seu vice a cometer um ato ilegal – adiar a certificação da vitória de Biden, violando seus deveres constitucionais. De acordo com um relato da ligação vazado para The New York Times, Trump bajulou Pence com as palavras imortais: “Você pode entrar para a história como um patriota ou pode entrar para a história como um covarde”.

Pence entrou para a história como um patriota, cumprindo seu dever constitucional e certificando o resultado legítimo. Mas aquele telefonema marcou um ponto importante na cronologia da tentativa de golpe de Trump: foi um ponto sem volta, seu último gesto para se manter no poder por meio da persuasão política.

Se Trump tivesse se desviado além desse ponto, teria entrado num território bem mais sombrio. Como Sykes colocou: “Quando ele desligou o telefone para Mike Pence, para quem ligou em seguida? Uma vez que ele soube que o vice-presidente não cumpriria suas ordens, o que viria a seguir?”

David Frum, ex-redator de discursos de George W. Bush, escrevendo na ­Atlantic, disse que havia duas linhas críticas de investigação: Trump deu sinal verde à insurreição do Capitólio com antecedência e se coordenou de alguma forma com os atacantes?

O comitê de 6 de janeiro mantém seu foco firmemente na chamada Sala de Guerra, o grupo de assessores próximos de Trump que se reuniu no Hotel Willard, em Washington, como o “centro de comando” dos esforços para subverter a eleição. Eles incluíam seu ex-estrategista Steve Bannon, seu advogado Rudy Giuliani e John Eastman, professor de Direito que preparou um plano detalhado de como manter o poder ilegitimamente. Como o Guardian relatou, Trump transmitiu ao grupo a recusa de Pence. Mas, além disso, continuamos no escuro.

Como resultado dos registros perdidos, não está claro se o então presidente permaneceu em contato com o grupo no Hotel Willard enquanto a insurreição se desenrolava. Tampouco se sabe se eles discutiram outras táticas.

A lacuna nos registros oficiais também pode dificultar a tentativa do comitê de verificar se houve contatos diretos entre Trump e os organizadores do 6 de janeiro. Ali Alexander, que instigou o movimento “Parem o Roubo” e que planejou um comício “Uma Nação sob Deus” no terreno do Capitólio, que foi cancelado em meio à violência, tem sido uma figura de interesse do comitê.

Antes da insurreição, ele falou com Kimberly Guilfoyle, a sócia do filho de Trump, Don Jr. A CNN informou que ele também disse em vídeos postados antes do ataque que planejava entrar em contato com os grupos de extrema-direita Proud Boys e Oath Keepers, para pedir que fizessem a segurança do comício. Ambas as organizações têm integrantes processados por atos criminosos em 6 de janeiro. No início deste mês, o líder dos Proud Boys, Enrique Tarrio, foi preso por conspiração e outras acusações. O fundador dos Oath Keepers e outros dez associados foram acusados de conspiração sediciosa.

Alexander testemunhou em dezembro perante o comitê de 6 de janeiro. Em seus comentários iniciais, disse: “Não tive nada a ver com qualquer violência ou violação da lei que aconteceu em 6 de janeiro. Não tive nada a ver com o planejamento. Não tive nada a ver com a preparação. E não tive nada a ver com a execução”.

Essas palavras poderiam facilmente ter saído da boca de Donald Trump. O desafio que o comitê enfrenta, na ausência dos registros telefônicos desaparecidos, é decidir se elas são verdadeiras. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Queima de arquivo”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo