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O lixo ofusca a luz
A campanha online contra a degradação de Paris é um movimento popular ou uma estratégia política difamatória da extrema-direita?


Em meio ao terceiro bloqueio geral causado pela Covid em Paris, em março passado, apareceu no Twitter uma hashtag com a foto de uma comporta do Canal Saint-Martin, que atravessa o norte da cidade, entupida de lixo, sacos plásticos e garrafas. Imagens de Paris com aparência feia devido ao desgaste não são novidade, mas, em poucos dias, dezenas de fotos de lixeiras transbordantes, calçadas quebradas e paredes cobertas de grafite apareceram com a mesma hashtag – #SaccageParis –, que se traduz, aproximadamente, como Paris Saqueada.
Hoje, menos de um ano depois, a hashtag foi usada mais de 2,7 milhões de vezes apenas no Twitter e tornou-se o grito de guerra daqueles que temem que a cidade esteja perdendo a alma. Para outros, trata-se de uma campanha de difamação política dirigida à prefeita socialista Anne Hidalgo, candidata nas eleições presidenciais deste ano.
Diferentemente dos protestos tradicionais, o “Saccage Paris” fotografa as ruas, em vez de ocupá-las. A campanha informal deu aos parisienses descontentes uma hashtag atraente para reclamar de qualquer coisa, de calçadas e ruas esburacadas a bancos de parque feios, lixo, objetos descartados e pichações. Quaisquer que sejam os motivos por trás da hashtag – a conta PanamePropre (ParisLimpa), que a cunhou, permanece decididamente anônima –, o movimento ganha força e levou a prefeitura a publicar um “manifesto pela beleza” para incrementar a cidade, que sediará os Jogos Olímpicos em 2024.
Há quem tema que a cidade tenha perdido a alma
Jacques Desse não parece ou se expressa como um guerreiro urbano radical. O livreiro de fala suave quase certamente preferiria enterrar o nariz num manuscrito raro do que dar entrevista. Mas ele está com raiva, e não é o único. Integrante da Saccage Paris, Desse lamenta a destruição dos símbolos históricos da cidade. Grande parte da fúria do movimento tem se dirigido à prefeitura, por remover, negligenciar ou substituir o patrimônio arquitetônico imediatamente reconhecível de Paris, principalmente o mobiliário urbano, grande parte dele datado do segundo império de Napoleão III, no século XIX. “Para muitos de nós, o Saccage Paris não tem motivos políticos. É um movimento de cidadãos, com uma ampla mistura de opiniões políticas. O que censuramos em Anne Hidalgo e sua equipe é que eles têm o poder de fazer algo sobre isso, mas não o usam de modo positivo”, explicou.
Para quem é de fora, especialmente os fãs da série Emily in Paris, da Netflix, a capital francesa é o cartão-postal do romance e dos sonhos, das baguetes e dos bulevares, da alta cultura e da alta-costura. Os parisienses, que vivem numa das cidades mais densamente povoadas do mundo, costumam pintar um quadro diferente. No mês passado, o comentarista da realeza mais conhecido da França, Stéphane Bern, anunciou que está de mudança de Paris porque ela ficou suja, violenta e é “uma lata de lixo”. “O que aconteceu com a Cidade Luz?”, perguntou. Bern apontou, no entanto, para os parisienses comuns, e não para Hidalgo. “O trabalho dela está longe de ser fácil e, até onde eu sei, não é ela quem suja, nem são os catadores de lixo. Os maiores culpados são, antes de tudo, as pessoas. Hidalgo certamente tem sua parcela de responsabilidade, mas não merece todos os ataques que lhe fazem”, acrescentou.
O historiador de arte Didier Rykner foi menos indulgente em seu recente livro La Disparition de Paris (O Desaparecimento de Paris), crítica detalhada da gestão de Hidalgo. Mas escrever livros sobre o estado de Paris também não é novidade. Em 1832, Victor Hugo publicou um panfleto no qual condenava os “vândalos” que arrasavam as torres e igrejas medievais em ruínas para construir substitutas no estilo neoclássico, então na moda. O barão Georges-Eugène Haussmann, responsável pela vasta transformação de Paris no século XIX e criador dos célebres grands boulevards, enfrentou forte oposição e controvérsia.
Reclame aqui. Hidalgo promete mudanças – Imagem: Mathieu Delmestre/ICommun97
PanamePropre disse que ele apenas expressa “a raiva de ver a cidade em que moro há mais de 20 anos se deteriorar diante dos meus olhos. Milhares de parisienses e amantes de Paris de toda a França, cidadãos comuns como eu, se uniram espontaneamente sob essa hashtag”. “É incrível como isso pegou”, disse Quentin, jovem engenheiro e ativista da Saccage Paris, que preferiu não dar seu nome completo. Estamos em um café perto da Porte Saint-Martin, no 10º arrondissement, onde um cabeleireiro local pintou uma grande tesoura na calçada sob o arco do século XVII. “Esse é o tipo de coisa de que o Saccage Paris trata. Eu denunciei, mas continua lá.” Quentin continua: “É verdade que a hashtag foi usada por alguns da extrema-direita, mas é uma hashtag, qualquer um pode usá-la. Isso é apenas uma desculpa, o verdadeiro problema é o dano e a remoção das coisas que compõem o patrimônio de Paris: as fontes, os postes de luz, as grades em volta das árvores, as entradas do metrô, os bancos…”.
A livraria cavernosa de Desse, atrás de uma porta de aparência anônima na Goutte d’Or, no que é chamado de “quartier populaire” – área pobre da classe trabalhadora, com grande população migrante –, fica abaixo da Porte de la Chapelle, o “portão” norte, onde os visitantes que chegam pela rodovia enfrentam diretamente o caos da cidade. O livreiro, que mora em cima da loja, diz que a comunidade local sente que as autoridades municipais a abandonaram. “Vimos a destruição da paisagem urbana e a desorganização aqui e em toda a cidade nos últimos dez a 15 anos”, afirmou. “As autoridades tentam fazer alguma coisa, mas o resultado é muitas vezes catastrófico, e não nos ouvem. É como uma empresa dirigida por um mau chefe: as coisas estão ruins até o fim e nada funciona.”
A prefeitura afirma que o movimento pode ser rastreado até os apoiadores da extrema-direita e é orquestrado por haters de Hidalgo. Assim como o lixo nas ruas, é fácil ver por que, quando posts nas redes sociais sobre o estado de Paris muitas vezes provocam ataques virulentos, às vezes difamatórios, à prefeita.
A prefeita Anne Hidalgo é uma das candidatas à Presidência da República
Ainda assim, as autoridades reagiram à enxurrada de críticas. Um dos vices de Hidalgo, Emmanuel Grégoire, anunciou recentemente que a prefeitura publicará um “manifesto pela beleza” de três volumes, com planos para melhorar a cidade, e admitiu que Saccage Paris defendeu alguns pontos “úteis”, embora o acuse de exagero. Grégoire disse que as medidas incluem a substituição de mobiliário urbano feio, tolerância zero para despejo de lixo e maiores esforços para combater pichações e afixação ilegal de cartazes.
Carlos Moreno, cientista franco-colombiano, professor universitário que vive em Paris há 42 anos e atuou como consultor independente de Hidalgo, disse que o problema é de autoridade centralizada e falta de pensamento conjunto, principalmente sobre coleta e descarte de lixo. Ele pediu às autoridades que deleguem mais aos prefeitos locais e nomeiem um “urbanista-chefe” internacional, com uma equipe de profissionais, para supervisionar as mudanças estéticas no nível da rua. “O manifesto da beleza não é suficiente. Essas coisas não devem ser decididas por funcionários públicos, precisamos de especialistas”, disse. “Claro que devemos manter as coisas que fazem parte do patrimônio de Paris, mas isso não significa que tudo o que é antigo deva ser mantido. E, claro, Paris não deve ser um museu, então devemos ter coisas modernas e legais, mas não se elas forem feias.”
Moreno destacou que Paris tem desafios únicos causados por sua densidade e pelo fato de ser uma das cidades mais visitadas do mundo. “Não é certo dizer que a cidade é uma lata de lixo. Houve alguns fracassos, mas houve grandes sucessos sob Anne Hidalgo. Digam o que quiserem, mas ela tem uma grande visão para a cidade e estou otimista para o futuro”, afirmou.
Uma coisa em que ambos os lados concordam é que o futuro da Cidade Luz é, ou pode ser, brilhante. “Quando começamos, a prefeitura dizia que éramos todos reacionários. Não somos, mas eles precisam começar a nos ouvir. Sou otimista, mas preciso lutar pela cidade e seu patrimônio”, disse Quentin. “Temos de encontrar uma maneira de tornar Paris bonita novamente.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O lixo ofusca a luz”
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