Mundo
O legado de Francisco
O papa criou fissuras na sólida estrutura católica. E tapou rachaduras


Em 27 de abril, nos despedimos de Francisco, o primeiro papa a invocar o carisma de São Francisco de Assis em seu nome, sinalizando com ele o direcionamento que queria dar ao seu papado. Desde sua primeira aparição até sua morte, o pontífice imprimiu símbolos e gestos concretos capazes de ocasionar fissuras que, se aprofundadas, podem, no longo prazo, abalar a sólida estrutura do catolicismo.
Seguido de seu nome, o primeiro gesto na direção de uma Igreja mais humana e mais humilde foi rejeitar as vestes luxuosas para se apresentar ao povo da sacada da Basílica de São Pedro, evidente demonstração de que não seguiria os mesmos caminhos, nem vestiria, literalmente, os mesmos calçados que seu antecessor, conhecido pelo apreço às suntuosidades.
Não só as estruturas, mas os ritos e símbolos católicos estão envoltos pela ideia de poder e riqueza. Francisco optou por viver de forma simples, em uma hospedaria coletiva, no lugar do Palácio Apostólico tradicionalmente destinado à residência papal. Sem dúvida, essa opção pela simplicidade – evocando não apenas o carisma de São Francisco, mas os ensinamentos do próprio Cristo – é um dos elementos centrais do legado de Francisco.
Por outro lado, Francisco também serviu de argamassa que possibilitou atenuar algumas avarias estruturais provocadas pela degradação institucional, moral e econômica ao longo dos séculos. Talvez a principal delas tenha sido a recuperação de fiéis e da confiança na própria instituição. Francisco assume o papado em uma época em que escândalos de corrupção econômica e moral pareciam abalar seus pilares mais consistentes, a exemplo do caso que ficou conhecido como “Vatileaks”, em 2012.
É certo que Francisco não promoveu rupturas significativas no que se refere à estrutura e doutrinas da Igreja Católica – o que inclui sua rígida hierarquia, suas bases patriarcais, a exclusão das mulheres de espaços de poder e decisão, assim como questões relativas à sexualidade e à reprodução –, mas se viu obrigado a encarar assuntos espinhosos e a responder de modo concreto a eles. Não pode ser considerado um progressista, mas, sem dúvida, foi um papa aclamado pelos setores progressistas, tornando-se um símbolo da renovação da Igreja. Mesmo conservando as doutrinas e a estrutura de poder, foram os setores ultraconservadores que mais o rechaçaram.
No campo pastoral, Francisco deixou como legado um posicionamento contundente contra a exploração predatória do capitalismo, em favor dos migrantes e refugiados, e ofereceu acolhida não apenas simbólica e concreta às populações mais vulneráveis (imigrantes, encarcerados, em situação de rua, população LGBTQIAPN+). Não se curvou ao tradicional silenciamento diante das denúncias de abuso sexual, criando um conselho para investigar e julgar a pedofilia cometida por clérigos.
No que se refere ao papel das mulheres, ainda que de modo tímido, avançou ao incorporar mais mulheres em cargos de liderança. De modo mais significativo, nomeou, em 2019, sete mulheres para integrar o dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, ocupado exclusivamente por homens até então. Em 2022, abriu caminhos institucionais com a reforma da Constituição da Santa Sé para a nomeação de uma mulher como prefeita de um dicastério – fato que se concretizou no último janeiro com a nomeação de Simone Brambilla como prefeita do mesmo dicastério que passou a integrar em 2019.
O pontífice virou símbolo da renovação
Ainda que a simples nomeação de mais mulheres não altere a estrutura patriarcal católica, o episódio que envolve Brambilla e o engano de sua convocação para o conclave é emblemático dessa fissura provocada por Francisco, que, no mínimo, possibilita descascar a tinta envelhecida de doutrinas, leis e burocracias patriarcais e revelar o quão porosas são suas estruturas às concretudes da vida cotidiana e o quão perecíveis podem ser ao longo do tempo.
Houve uma tonalidade pedagógica em relação a temas sensíveis à moralidade católica, como a homossexualidade. Uma postura de acolhida, em vez da condenação. Ao afirmar, “quem sou eu para julgar” um homossexual, Francisco está indicando que nem mesmo ele, como autoridade máxima do catolicismo, poderia fazer tal julgamento, desautorizando, portanto, que fiéis o fizessem em nome da Igreja. Além de possibilitar que casais homoafetivos recebessem uma bênção.
Francisco fez esforços para garantir uma “Igreja em saída”, estabelecendo o princípio da sinodalidade, que se refere a um processo de descentralização do poder da Cúria Romana sobre determinadas questões de ordem moral e doutrinária para os sínodos, articulado com o estabelecimento de mecanismos de escuta de toda a comunidade de fiéis na preparação dos sínodos e a inclusão de mulheres com direito a voto.
A grande verdade é que não nos deveria surpreender o que foi Francisco. Como pontífice, não é apenas sucessor de Pedro, mas responsável por levar adiante a mensagem de Cristo. E o que foi Cristo senão um profeta da justiça, da compaixão e do amor ao próximo? Paradoxalmente, o que torna Francisco tão extraordinário é justamente ter recuperado elementos fundantes do cristianismo, que hoje, dois milênios depois, são rechaçados por aqueles que afirmam defender a “tradição”.
O legado de Francisco deixa marcas na Igreja Católica, mas também levanta questões que o próximo pontífice precisará enfrentar. O novo papa será capaz de aprofundar as reformas do antecessor ou voltará a Igreja para os caminhos mais conservadores, buscando preservar a rigidez de sua hierarquia e a exclusão de temas delicados, como a questão do papel das mulheres e da sexualidade? O futuro, sem dúvida, apresentará novos desafios sobre os rumos que a Igreja Católica tomará nas próximas décadas e sua postura diante das emergências globais que se apresentam. •
*Coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Historiadora e mestra em Ciência da Religião (PUC–SP). Pesquisadora da linha de Gênero, Religião e Poder do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR–Unicamp).
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O legado de Francisco’
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