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O inimigo do inimigo
Os EUA suspendem as sanções econômicas e dão fôlego a al-Sharaa


O Departamento do Tesouro dos Estados Unidos autorizou, na sexta-feira 23, transações comerciais com o novo governo, o Banco Central e um conjunto de entidades estatais da Síria. Foi o cumprimento da promessa feita duas semanas antes por Donald Trump durante a visita à Arábia Saudita. A decisão remove 28 indivíduos e instituições da lista de sanções, incluídos a companhia área local, a empresa de petróleo e o sistema estatal de radiodifusão. Trata-se de um alívio considerável para a administração encabeçada por Ahmad al-Sharaa, ex-líder da Hay’at Tahrir al-Sham, grupo originado da antiga Al-Qaeda na Síria (Jabhat al-Nusra), ainda inscrita na lista de organizações terroristas estrangeiras do Departamento de Estado dos EUA.
A Síria enfrenta uma série de problemas econômicos e políticos acumulados durante os 25 anos de Bashar al-Assad no poder e os 13 de uma guerra civil que destruiu o tecido social, situação agravada pelas sanções impostas pelo Ocidente. O bloqueio econômico foi potencializado a partir da Primavera Árabe. Segundo o site Middle East Eye, o comércio bilateral entre EUA e Síria caiu de 900 milhões para 60 milhões de dólares no período. Mouin Rabbani, analista político e ex-assessor no Escritório do Enviado Especial da ONU para a região, diz que o regime de Al-Assad colapsou pela combinação de forças domésticas e externas, mas não só. “A desintegração da economia e um Estado com uma habilidade cada vez mais limitada para prover as suas forças” foram os principais fatores da queda do ditador.
Dados econômicos do Banco Mundial dimensionam o impacto das sanções econômicas impostas ao país. Entre 2005 e 2011, o setor agrícola e de pesca representava cerca de 20% do PIB sírio. A partir de 2012, a participação subiu e chegou a 43% em 2022, último ano com indicadores disponíveis. A indústria, por outro lado, chegou a compor 34% do PIB em 2006. Em 16 anos, a porcentagem acabou reduzida a 12%. A inversão, avalia o economista Francisco Pessoa Faria, deriva do fato de a agricultura ser uma atividade menos dependente de insumos importados, ao contrário da manufatura. “Há basicamente a terra e a mão de obra. O fertilizante é essencial, mas um dos maiores produtores mundiais é a Rússia, aliada de Al-Assad.” Moscou passou a dar suporte ao ditador a partir de 2015, após uma operação militar em território sírio contra o Estado Islâmico.
Voltar ao mercado de crédito é essencial para a estabilização do país
A burocracia estatal e os partidos políticos que sustentavam Al-Assad e praticamente se dissolveram, diz Yezid Sayigh, pesquisador sênior no Centro de Oriente Médio Malcolm H. Kerr, estão em compasso de espera para ver se o novo governo será capaz de reativar a economia. “Esses vários setores provavelmente devem aceitar a nova realidade, especialmente se o suprimento de comida for regularizado, a inflação controlada, o crédito começar a fluir e os mercados começarem a se recuperar.” Em 2022, a alta de preços anual chegou a 112%. Desde 2005, a subnutrição, relata a Organização de Alimento e Agricultura da ONU, disparou, de 5% para 34% em 2023.
Trump foi convencido por dois interlocutores. De acordo com a rede de tevê CNN, a retomada das relações comerciais envolveu negociadores sauditas durante meses. Os aliados árabes argumentaram que a derrubada das barreiras impulsionaria a economia síria e se tornaria um fator importante de estabilidade regional. O outro foi o governo turco. O presidente Recep Tayyip Erdoğan manteve conversas regulares com a Casa Branca e foi um dos primeiros a declarar apoio às negociações em Riad. No sábado 24, Erdoğan recebeu Al-Sharaa em Istambul. A Turquia foi o país que mais ganhou com a queda de Al-Assad, avalia Sayigh. “Os aliados turcos que estavam na oposição ganharam o poder, o país conquistou a dissolução do PKK curdo e espera que a autonomia curda na Síria seja contida dentro de limites aceitáveis. Além disso, deve haver um maior número de refugiados sírios retornando para casa.”
O presidente dos EUA também vislumbra o aumento da influência de Washington no país. A longevidade do fim das sanções, noticiou o site New Arab, depende da disposição de Al-Sharaa em excluir “combatentes externos da governança” e cooperar “com iniciativas de contraterrorismo internacional”. O secretário norte-americano de Estado, Marco Rubio, afirmou que não pode haver hesitação nos compromissos de reforma e apoio na área de segurança.
Rabbani aponta um dilema do novo governo sírio. Por um lado, a suspensão das sanções ocidentais, não apenas dos EUA, pois a União Europeia seguiu os passos de Washington e retomou relações com Damasco, é absolutamente essencial para o esforço de reconstrução e o esfriamento das tensões internas. “O problema não é a condicionalidade, pois está claro que as sanções e a maneira pela qual foram suspensas são um punhal apontado para o coração da Síria. Em vez disso, o problema é como a liderança local vai se engajar com essas condições para garantir soberania e independência.” •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O inimigo do inimigo’
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