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O inferno é mais embaixo

Na nova fase de ataques, Israel conjuga bombardeios tradicionais e o uso da fome como arma

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De cá para lá. Grande parte da população do enclave vê-se obrigada a deixar novamente suas casas e seguir para as áreas definidas por Tel-Aviv – Imagem: AFP/Stringer
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Enquanto Donald Trump concentra a atenção planetária com a retomada da guerra tarifária, Israel aproveita a deixa. Nos últimos dias, a despeito de uma nova proposta de cessar-fogo sobre a mesa, as tropas do país cumprem uma ofensiva na Faixa de Gaza que une os bombardeios tradicionais e a expansão do uso da fome como arma de destruição. A jornalista palestina Bisan Owda, em seu Instagram, resume a situação: “Os estoques que existiam em armazéns de organizações internacionais foram consumidos em cerca de duas semanas”.

No fim de maio, Israel, em conjunto com empresas privadas dos Estados Unidos, instalou um novo modelo de distribuição de mantimentos, o Fundo Humanitário de Gaza. Era uma forma de enfraquecer o sistema coordenado por entidades internacionais ligadas a projetos humanitários. O programa não lidou com a escassez, apenas a administrava com fins militares. Desde o início das operações, cerca de 800 palestinos foram atraídos para uma espécie de emboscada nos arredores desses centros.

Alex de Waal, pesquisador e autor de Mass Starvation: The History and ­Future of Famine, disse em entrevista ao ­site Democracy Now não haver, desde a Segunda Guerra Mundial, “uma crise de fome que foi tão minuciosamente planejada, controlada e monitorada”. No domingo 20, a rede de tevê CNN noticiou que Razan Abu Zaher, menina de 4 anos, morreu no hospital da parte central de Gaza por complicações da fome e da má nutrição. O corpo esquelético sem vida foi colocado em uma tábua. Na terça-feira 22, Youssef, de 6 semanas de vida, morreu na Cidade de Gaza. A agência de notícias Reuters descreveu a cena: “Seu corpo sem vida repousa suavemente em uma mesa de hospital, sua pele cravada por ossos protuberantes e por um curativo onde a sonda foi inserida no seu pequeno braço. Os médicos disseram que a causa da morte foi fome”. Razan e Youssef­ estavam entre os 15 pacientes mortos por privações alimentares em 48 horas.

O quadro atual, afirma De Waal, foi previsto pela ONU e pelo Comitê Independente de Análise de Crises de Fome. “Em maio, havia relatos de autoridades que indicavam que, a partir do completo cerco iniciado em março, diante dos estoques em Gaza, os alimentos acabariam em semanas. Entre 60 e 80 dias é o tempo que leva para um adulto morrer de fome. Uma criança leva menos, particularmente um bebê sem fórmula infantil, sem água potável e sem cuidado materno.”

A palestina Ruwaida Amer publicou um relato no site +972 sobre sua experiência em Gaza. Em maio, Amer foi forçada a fugir de casa e se estabelecer em um abrigo no campo de refugiados de Khan Younis. “Desde que Israel impôs o bloqueio total, no começo de março, não saboreamos o gosto de carne, ovos ou peixe. Na verdade, ficamos sem 80% das comidas que costumávamos comer. Nossos corpos estão quebrando, nos sentimos constantemente fracos, sem foco, sem equilíbrio. Nos irritamos facilmente, mas na maior parte do tempo apenas ficamos em silêncio. Falar gasta muito de nossa energia.” O pouco que há nos mercados, conta, chegou a preços exorbitantes. Um quilo de tomate vale 25 dólares (138 reais, na cotação de 23 de julho). Pepino, 20 dólares (111 reais). Um quilo de farinha chega a 45 dólares (250 reais).

O número de vítimas de inanição aumenta a cada dia

As informações dramáticas e as imagens chocantes de Gaza têm levado aliados de primeira hora de Tel-Aviv a publicar “notas de repúdio”. Um comunicado assinado por 25 países, incluídos Reino Unido, França, Espanha e Canadá, pede o fim imediato da guerra, além de condenar “o suprimento a conta gotas de ajuda humanitária e o assassinato desumano de civis, incluindo crianças, que buscam atender suas mais básicas necessidades de água e comida”. Mas tudo fica restrito a declarações bem-intencionadas. Para Bisan Owda, só há um caminho efetivo para lidar com a catastrófica crise: “A solução para Gaza é abrir as fronteiras para que suprimentos entrem com urgência. Jogar alimentos pelo ar, com entregas por avião, é um grande consumo de tempo e energia. É limitado, pouco efetivo e muito humilhante. Apenas aqueles que podem correr pegam a comida. Ela não chega a feridos, doentes e equipes médicas”.

A configuração da ação militar atual indica uma fase de conquista e expulsão ordenada pelo Ministério da Defesa israe­lense. Em 6 de julho, o ministro Israel Katz apresentou um plano para forçar e concentrar 600 mil palestinos ao sul, em meio às ruínas de Rafah. Israel propôs erguer o que denominou de “Cidade Humanitária”, na qual os refugiados seriam concentrados e só poderiam sair para fora de Gaza. A ideia seria concentrar a população na região de Al-Muwasi, no sudoeste, e no sul. O diário Haaretz descreveu os debates entre os militares. O máximo possível de palestinos seria concentrado nas áreas determinadas pelo exército. O resto do enclave, especialmente ao norte, seria esvaziado, sob o pretexto de “destruir o Hamas”.

No domingo 20, teve início um novo deslocamento em massa na região de Deir al Balah, na parte central de Gaza. A OCHA estima que entre 50 mil e 80 mil habitantes seriam expulsos de quatro bairros. Israel passa, dessa maneira, a controlar 87,8% do território, entre zonas definidas como militares ou sob ordens de evacuação. Barak Ravid, em seu blog na plataforma Axios, informou, em 18 de julho, que o diretor do Mossad, ­David Barnea, visitou Washington em busca do apoio dos EUA para convencer países a receber milhares de palestinos expulsos de Gaza. Barnea disse a Steve Witkoff, o enviado de Donald Trump para o Oriente Médio, que a diplomacia israelense teve “conversas positivas” para realocar os expulsos na Etiópia, Indonésia e Líbia. Os três países estariam propensos a receber a população deslocada em troca de dinheiro. •

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O inferno é mais embaixo’

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