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O gatilho da indiferença

O mundo normaliza o massacre em Gaza, enquanto o Oriente Médio entra em uma espiral de ódio

O gatilho da indiferença
O gatilho da indiferença
Gaza é, literalmente, uma terra arrasada. Quanto mais há risco de o conflito se alastrar pela região, mais Netanyahu ganha minutos no poder – Imagem: Mahmud Hams/AFP e Ronen Zvulun/AFP
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Varia, de conflito a conflito, o momento exato em que a avalanche de informações e imagens começa a produzir o efeito inverso. De repente, não mais do que de repente, a indignação transforma-se em indiferença. Os ucranianos experimentam essa sensação faz tempo. A invasão russa ultrapassou a marca dos 500 dias e, apesar das promessas dos aliados ocidentais, a Ucrânia nunca esteve tão à mercê do Kremlin. Nos Estados Unidos, os republicanos bloqueiam o envio de armas e dinheiro. Na União Europeia, o entrave tem sido a Hungria de Viktor Orbán. Desfeita a ilusão – ou a propaganda – de uma decantada vitória sobre a Rússia, quase ninguém se lembra do sofrimento da população ucraniana, em mais um inverno sem energia e sem perspectiva. Enquanto isso, Volodymyr Zelensky cumpre o vaticínio do chanceler russo, Sergey Lavrov. Tornou-se, a contragosto, no “mendigo de Kiev”. Quanto mais implora a Washington e a Bruxelas, menos migalhas recebe. Zelensky é obrigado a se contentar com tapinhas na costa e declarações de incentivo.

A caminho do quarto mês, o conflito na Faixa de Gaza parece seguir o mesmo traçado. Diariamente, os corpos dos palestinos continuam a ser empilhados às centenas e um processo na Corte de Haia, aberto a pedido da África do Sul, vai determinar se Israel pratica ou não genocídio no enclave (análise de ­Reginaldo Nasser à pág. 14), mas a contagem do número de vítimas reverbera um processo mecânico. Na segunda-feira 15, segundo as autoridades de saúde palestina, eram 24.118 mortos e mais de 60 mil feridos. No dia seguinte, os ataques israelenses acrescentaram cerca de 200 vítimas às estatísticas. Ao mesmo tempo, o Hamas divulgou nas redes sociais a imagem de dois reféns israelenses mortos em cativeiro. Há ainda 132 prisioneiros em poder do grupo islâmico – não se sabe quantos vivos. Quem se comove?

Aumenta a probabilidade de o conflito se alastrar pela região, com consequências incertas

O martírio está longe do fim. As duas primeiras semanas do ano estabeleceram uma nova dinâmica na região e, a esta altura, o mundo encontra-se mais perto de assistir a um conflito generalizado no Oriente Médio do que à retirada das tropas israelenses do território palestino, embora o ministro da Defesa, Yoav Gallant, tenha, na terça-feira 16, anunciado para breve o fim da ofensiva em “alta intensidade” na Faixa de Gaza. Parênteses: na noite do anúncio de Gallant, mísseis e soldados israelitas mataram 163 palestinos em Gaza e sete na Cisjordânia. Na fronteira norte, o Hezbollah, grupo armado xiita libanês, mantém a prontidão e faz ataques fortuitos às tropas israelenses. O Irã destruiu supostas “bases de espionagem do Mossad” no Iraque e na Síria. Outra ação de Teerã provocou um incidente diplomático com o Paquistão, que acusa o regime dos aiatolás de matar duas crianças em seu território durante o lançamento de mísseis contra aparentes redutos do grupo sunita Jaish al-Adl, acusado de assassinar 11 policiais iranianos. “A responsabilidade pelas consequências recairá diretamente sobre o Irã”, protestou em nota o Ministério das Relações Exteriores paquistanês.

A mais recente e preocupante frente de tensão desenrola-se, no entanto, no Mar Vermelho. Os bombardeios norte-americanos, apoiados pelo Reino Unido, a alvos militares no Iêmen não foram suficientes para dissuadir os rebeles houthis (reportagem à página 16). Em solidariedade aos palestinos e com a bênção dos aiatolás iranianos, o grupo xiita tem infernizado, desde o fim de 2023, as rotas comerciais no estreito de Bab-el-Mandeb, por onde trafegam 15% dos produtos enviados pela Ásia à União Europeia. Em seu mais recente relatório, o Banco Mundial alerta para os efeitos da instabilidade sobre a recuperação da economia global. “Os recentes ataques a navios comerciais começaram a perturbar as principais rotas marítimas”, descreve o texto, “o que desgasta a folga nas redes de abastecimento e aumenta a probabilidade de estrangulamentos inflacionários. Em um cenário de conflitos crescentes, o fornecimento de energia também poderá ser substancialmente perturbado.” Grandes empresas e operadores de logística suspenderam o trânsito de mercadorias até segunda ordem, enquanto os houthis prometem intensificar os ataques em retaliação aos bombardeios ordenados por Washington. Na terça-feira 16, afundaram uma embarcação de bandeira grega. “O navio não precisa necessariamente estar em direção a Israel para que possam atingi-lo. Basta que seja norte-americano. Os EUA estão à beira de perder a sua segurança marítima”, ameaçou Narsuldeen Amer, porta-voz dos rebeldes.

Familiares pedem a libertação dos reféns judeus, mas este virou assunto secundário – Imagem: Ahmad Gharabli/AFP

O único beneficiário de uma conflagração regional é o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Quanto maiores as chances de o conflito envolver outras nações do Oriente Médio, mais forte se torna o argumento em favor da manutenção de um governo de coalização nacional, o que adiaria não só o fim do mandato de Bibi, a quem a maioria dos compatriotas culpa pelos atos do Hamas em 7 de outubro, mas o afastaria por tempo indeterminado do acerto de contas com a Justiça israelense, em decorrência das acusações de corrupção. Netanyahu agradece e mantém o fósforo aceso perto do rastilho de pólvora. O Parlamento israe­lense acaba de aprovar um aumento de 15 bilhões de dólares (cerca de 75 bilhões de reais) no orçamento militar, para fazer frente à promessa de uma longa operação em Gaza, sem data para acabar.

Os alertas das entidades de direitos humanos, por sua vez, continuam perturbadores. A despeito dos acordos para a entrada de ajuda humanitária, o último anunciado pelo Catar na quarta-feira 17, a escassez de alimentos é outra forma de punir os palestinos. “A guerra trouxe a fome com uma velocidade incrível para a frente das linhas”, afirmou ­Martin Griffiths, subsecretário-geral das Nações Unidas. No Fórum Econômico Mundial, em Davos, o chefe de Griffiths, António Guterres, voltou a pedir um cessar-fogo: “O mundo está de braços cruzados, enquanto civis, na sua maioria mulheres e crianças, são mortos, mutilados, bombardeados, forçados a abandonar suas casas e lhes é negado o acesso ao apoio humanitário”. Diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros ­Adhanom, define a situação como uma “mistura letal de doença e fome”.

Israel usa a fome como arma de guerra, acusam especialistas em Direitos Humanos da ONU

Um relatório de especialistas da ONU, divulgado na terça-feira 16, detalha a calamidade de modo instrutivo e acusa ­Israel de usar o bloqueio como arma de guerra. Eis alguns trechos: “Atualmente, toda a população passa fome e luta para encontrar comida e água potável (…) As mulheres grávidas não recebem nutrição e cuidados de saúde adequados, colocando suas vidas em risco. Além disso, todas as crianças com menos de 5 anos – 335 mil – correm alto risco de desnutrição grave, à medida que (…) as condições de fome ­continuam a aumentar. Uma geração inteira corre o risco, agora, de sofrer de nanismo. Isso prejudicará a capacidade de aprendizado”.

Os especialistas prosseguem: “Nenhum lugar é seguro em Gaza. Desde 9 de outubro, ­Tel-Aviv declarou e impôs um ‘cerco total’, privando 2,3 milhões de palestinos de água, alimentos, combustível, medicamentos e fornecimentos médicos, isso no contexto de um bloqueio israelense de 17 anos, que antes da guerra fez com que metade da população de Gaza sofresse de insegurança alimentar e mais de 80% dependesse de ajuda humanitária (…) É sem precedentes fazer com que toda uma população civil passe fome de forma tão completa e rápida”.

Blinken reuniu-se outra vez com Abbas. As incursões do norte-americano colhem poucos frutos – Imagem: Chuck Kennedy/Departamento de Estado/EUA

Diante da perspectiva de um conflito regional de consequências incertas, as conversas em torno do futuro do enclave após o fim da incursão militar israelense, quando e se vier, têm sido infrutíferas. Em entrevista à CNBC, Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, que pela quarta vez desde o início do conflito realizou um tour pelo Oriente Médio para tentar evitar uma guerra generalizada, afirmou que os países árabes se recusam a assumir os custos da reconstrução de Gaza por uma razão simples: a possibilidade de Israel voltar a pôr abaixo o território em pouco tempo. De forma mais direta, o xeque Mohammed bin ­Abdulrahman al Thani, primeiro-ministro do Catar, expressou o horror e a desconfiança do mundo árabe ante a destruição: “Gaza não está mais lá. Quer dizer, não há nada lá. Há bombardeios em todos os lugares”.

O melhor para o governo de Netanyahu e seus aliados de extrema-direita e o pior para o resto do planeta é o conflito tomar outra proporção, a ponto de tirar o foco da responsabilidade israelense pelo massacre e transformar-se em palco de uma ­disputa geopolítica de maior amplitude. Os ataques a navios no Mar Vermelho pelos houthis têm sido usados como pretexto à retórica beligerante de governos ocidentais claudicantes e desesperados. É o caso do Reino Unido, onde a mal avaliada administração do Partido Conservador, em posição de aviso prévio até as eleições parlamentares do segundo semestre, busca uma bandeira de campanha capaz de gerar esperança de vitória. Parceiro dos Estados Unidos nos bombardeios a instalações dos rebeldes do Iêmen, Grant Shapps, secretário de Defesa da Grã-Bretanha, discursou na segunda-feira 15 a uma plateia de oficiais e lideranças políticas. Embora os meios de comunicação estrangeiros tenham dedicado notas de rodapé ao evento, as declarações de Shapps condensam o espírito dos tempos atuais – não só em Londres. “Acabou-se a era dos dividendos da paz”, afirmou o secretário, ao defender o aumento urgente e substancial nos gastos de defesa no Ocidente, em resposta à nova “Guerra Fria”, e prometer um incremento no orçamento militar da Inglaterra de 2% para 2,5% do PIB. “Daqui a cinco anos, poderemos olhar para vários lugares, entre eles a Rússia, a China, o Irã e a Coreia do Norte. Pergunte-se: é mais provável que esse número aumente ou diminua? Suspeito que todos sabemos a resposta. Provavelmente, crescerá. Portanto, 2024 deve marcar um ponto de inflexão.” •

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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