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O gado muge em inglês

As fake news e a violência política marcam as eleições de meio-termo. Os democratas correm atrás do prejuízo

Imagem: Mandel Ngan/AFP e Angela Weiss/AFP
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Paul Pelosi foi acordado pelos gritos do homem que tinha acabado de arrombar sua casa. “Onde está Nancy?”, berrava o invasor, que carregava uma mochila com corda, braçadeiras e empunhava um martelo. Eram 2 da manhã de 28 de outubro e àquela altura a presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, estava em Washington. Os policiais que atenderam ao chamado chegaram a tempo de testemunhar o agressor atacar violentamente o idoso de 82 anos. Paul Pelosi foi submetido a cirurgia para reparar uma fratura no crânio, além de ferimentos graves nas mãos e no braço direito.

Seguidor da ideologia Maga (sigla para Make America Great Again, slogan de Trump na campanha presidencial de 2016), David DePape, 42 anos, foi preso em flagrante. Em depoimento à polícia revelou que queria sequestrar a parlamentar, interrogá-la e “talvez quebrar as rótulas de Pelosi”, a quem ele via como “a líder do bando de mentiras contadas pelo Partido Democrata”. Nas redes sociais, DePape espalhava teorias da conspiração sobre negação do Holocausto, pedófilos no governo e que autoridades democratas administram redes de sexo infantil.

O ataque ao marido de Nancy Pelosi aponta a falta de limites dos apoiadores de Trump

O ataque, há duas semanas das eleições na Câmara, Senado e governos estaduais, marcadas para a próxima terça-feira 8, revela-se mais grave e simbólico do que se presume e não só pelo fato de Pelosi ser a terceira figura política mais importante dos Estados Unidos, atrás apenas do presidente Joe Biden e da vice-presidente Kamala Harris. Ele expõe novamente as batalhas duras que a democracia norte-americana tem travado com uma poderosa rede de mentiras e a concretização de uma tendência assustadora de ataques a integrantes do Congresso, especialmente após o início da Presidência de Trump. Evidentemente, os ataques ao Capitólio em 2020 são emblemáticos , mas nem de longe foram a origem.

Segundo levantamento realizado pelo jornal The New York Times desde 2016, mais de 75 cidadãos foram indiciados por intimidações concretas de violência contra legisladores. No geral, as ameaças atingiram um recorde de 9,6 mil no ano passado, segundo dados fornecidos pela Polícia do Capitólio, o dobro do total de 2020. Somente nos primeiros três meses de 2021, a corporação registrou mais de 4,1 mil ameaças contra legisladores na Câmara e no Senado. As intimidações aumentaram mais de quatro vezes depois de Donald Trump assumir o cargo. Em 2016, foram investigadas mais de 902 ameaças. No ano seguinte, o número chegou a quase 4 mil.

Convocado a participar das campanhas eleitorais, o ex-presidente ­Barack Obama tem rodado os Estados Unidos na tentativa de angariar votos para os democratas. Na última semana, em ­Detroit, após ser hostilizado por infiltrados, ­Obama comentou sobre a falta de respeito no discurso político e lembrou quando se candidatou à Presidência em 2008. “Naquela época, eu poderia visitar áreas republicanas e ter um diálogo positivo com aqueles que discordavam de mim politicamente, mas este não é o caso agora. Temos políticos que trabalham para incitar a divisão e tentar nos deixar com raiva e com medo uns dos outros para sua própria vantagem. Com poucas exceções notáveis, a maioria dos políticos republicanos no momento nem finge que as regras se aplicam a eles. Eles parecem estar bem em apenas inventar coisas.”

Em campo. Obama corre o país na campanha democrata – Imagem: Adam Schultz/Casa Branca Oficial

Após o ataque em sua residência, ­Pelosi disse em comunicado que ela e os familiares foram “inundados com milhares de mensagens transmitindo preocupação, orações e desejos calorosos”, mas nem todos no Congresso ou fora dele foram tão generosos. Elon Musk, o bilionário golpista, tinha concluído a compra do Twitter há menos de três dias, quando decidiu tuitar sobre “uma pequena possibilidade de haver mais nessa história” e incluiu um link de um artigo do site de extrema-direita Santa Monica Observer que afirmava que Paul Pelosi, na verdade, estava bêbado e havia entrado em luta corporal com um garoto de programa. A publicação de Musk, que tem mais de 100 milhões de seguidores, foi excluída horas depois, mas o estrago havia sido feito e o assunto virou munição nas mãos de republicanos trumpistas.

Como permanece banido do Twitter, embora Musk tenha sinalizado que isso não deve durar por muito tempo, e sem ter o WhatsApp como aliado (o aplicativo não tem adesão entre os norte-americanos como no Brasil), Trump faz de suas entrevistas em rádios conservadoras verdadeiros palanques de proliferação de fake news que se espalham como pólvora. Na terça-feira 1°, ao comentar sobre o ataque a ­Pelosi, o ex-presidente reproduziu a teoria de Musk e afirmou sem qualquer evidência, fonte ou prova que “coisas estranhas estão acontecendo naquela casa nas últimas duas semanas”. Em suas aparições, o ex-presidente, assim como seus apoiadores, tem deixado claro que não sente medo de represálias judiciais por mais miseráveis, cruéis, preconceituosos ou falsos sejam seus ataques aos adversários. Ainda que exista uma ala com princípios morais no Partido Republicano, a mesma que condenou a invasão à casa de Pelosi, não parece existir até agora um nome ou um grupo capaz de confrontar os devaneios de seus colegas trumpistas. Isso porque, mesmo após consecutivos escândalos, Trump ainda é o nome mais forte na legenda. E é nesse ritmo insano de fazer política que as eleições estão mais uma vez mergulhadas na lama, um claro déjà vu das corridas presidenciais de 2016 e 2020.

Além das fake news, as principais bandeiras erguidas tanto por democratas quanto por republicanos praticamente não se alteram. Na segunda-feira 31, pesquisa da Gallup mostrou que, entre as questões políticas mais discutidas neste ano, a economia lidera em importância para os eleitores. Quase metade, 49%, diz que o tema será extremamente importante na hora de votar. Mas o aborto e o crime são quase tão proeminentes. Aproximadamente, 4 em cada 10 atribuem a mesma importância ao aborto e ao crime: 42% e 40%, respectivamente.

As pesquisas apontam vantagem dos democratas no Senado e dos republicanos na Câmara

De olho nesse eleitor progressista, democratas prometem, em caso de manutenção da maioria no Congresso, que vão trabalhar para retomar as proteções ao direito ao aborto eliminadas em junho pela Suprema Corte. “Acredito que o Congresso deveria codificar Roe de uma vez por todas”, afirmou o presidente Joe ­Biden. “Mas, neste momento, temos poucos votos, o que torna a eleição de meio de mandato tão crítica”, explicou durante discurso em Washington. Levantamento realizado em meados de outubro mostrou, no entanto, que crítica de fato é a situação de Biden nas pesquisas de avaliação do governo. Enquanto 40% dos entrevistados aprovam o desempenho do democrata, 56% o desaprovam. Números que têm dado aos republicanos esperança para tentar levar o maior número possível de vagas nas duas Casas e nos estados.

Mesmo com aprovação presidenciável ruim, novas pesquisas do The New York Times e do Siena College mostram que, na disputa pelos governos estaduais e no Senado, os democratas têm uma leve vantagem sobre os republicanos. Os ânimos estão mais acirrados nos sempre problemáticos estados de Nevada, Geórgia e Pensilvânia. Na Câmara, os republicanos levam a melhor neste momento, sobretudo quando se valem de discursos, em sua maioria xenófobos, contra a política de imigração de Biden. Ao todo, estão em jogo os 435 assentos na Câmara dos Deputados, 35 das 100 cadeiras no Senado e 36 vagas de governador entre os 50 estados. Como o voto é impresso, o resultado só deve ser conhecido a partir de 18 de novembro, mas as autoridades têm até 20 dias para finalizar as contagens. Até lá, ainda há uma longa estrada de campanha para os dois partidos. Republicanos continuarão a se acotovelar pela atenção presunçosa de Trump, enquanto os democratas fazem um último apelo pela presença de Obama em seu palanque. Ora, se cada partido tem o líder que merece, não há como garantir, mas Obama parece certo quando diz que “a democracia também está nas urnas”.  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O gado muge em inglês “

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