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O fracasso da missão de paz da ONU no Saara Ocidental

Ocupado ilegalmente pelo Marrocos, o povo saaraui enfrenta um regime de exceção silenciado pela força diplomática

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Numa precária estrutura de barro a 200 metros do imponente Team Site da ONU, na região de Bir Lehlu, nas zonas liberadas do Saara Ocidental, perguntamos ao oficial saaraui responsável pela intermediação com os capacetes-azuis naquela região sobre o atual papel da organização na solução do conflito.

O militar, que se identifica por Ali Baaya, solta uma risada e responde: “Eles estão apenas coletando dinheiro. Nada mais. Estão se divertindo, comendo bem, desfrutando o tempo”.

Ao aproximar-nos do Team Site, um grande outdoor se destaca em meio à monotonia árida da Hamada, a região mais inóspita do deserto: “Welcome to Bad Boy’s House”. O motorista saaraui que nos conduziu até o local aponta para o outdoor com tom de sarcasmo e traduz para o espanhol: “Mira, los ‘chicos malos’. No es broma, eh?” (Olhem, os ‘meninos malvados’. Não é brincadeira, hein?).

O pretensioso nome virou motivo de chacota durante o tempo em que permanecemos nas zonas liberadas. “Cuidado que eles vão te pegar, Zé Pequeno!”, ironizou Mohamed Bah, nosso guia e tradutor, fazendo referência ao filme brasileiro Cidade de Deus. O sarcasmo acaba se tornando a maneira mais eficaz de lidar com uma realidade que para os saarauis parece surreal.

“O orçamento da Operação de Paz da ONU já passou da casa de 1 bilhão de dólares. Virou uma espécie de apêndice burocrático que está instalado e que realmente não se sabe que papel desempenha”, disse-nos em São Paulo Emiliano Gómez, presidente da Associação Uruguaia de Amizade com a República Árabe Saaraui Democrática, com sede em Montevidéu.

Ao final de abril de cada ano, o Conselho de Segurança das Nações Unidas reúne-se para discutir e renovar o mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (Minurso). Um ritual estabelecido há 26 anos, a renovação do mandato traz uma mistura de alívio e frustração – tendendo muito mais para a frustração – aos saarauis, o povo autóctone da última colônia africana, um dos últimos Territórios Não Autônomos no marco das Nações Unidas.

Alívio porque após 40 anos como refugiados sobrevivendo nas condições mais duras e adversas do deserto, os saarauis aprenderam por necessidade que a esperança deve ser a última a morrer, e sabem o quanto a via pacífica é preferível ao conflito armado, que conheceram tão bem.

Frustração, porque a renovação da Minurso é um velho filme que já não convence a nenhum espectador. A maioria esmagadora dos saarauis perdeu confiança no processo de paz, e, dada a sensação de abandono que sentem com relação à comunidade internacional, temem que a derradeira esperança logo se transformará num cenário de guerra inevitável.

“Na guerra perdi familiares e amigos, ficamos órfãos, foi terrível”, conta-nos Minatu Jatri, a mais antiga entre uma família de beduínos que visitamos nas zonas liberadas. “Somos amantes da paz, mas se a única solução for a guerra, voltaremos à guerra para libertar nossa terra”, concluiu a anciã desde dentro da típica jaima (tenda) saaraui, onde abriga sua família.

Como o próprio nome indica, a Minurso foi estabelecida em 1991 com o objetivo de realizar um referendo de autodeterminação em que o povo saaraui pudesse escolher entre a independência ou anexação ao Marrocos, país que ocupa ilegalmente o território do Saara Ocidental, localizado ao sul de suas fronteiras jurisdicionais. Passados 26 anos, os saarauis ainda aguardam a realização do referendo. O teste de paciência parece estar se esgotando.

O clima de tensão é o primeiro fator que se nota a qualquer pessoa que visita as zonas liberadas ou os acampamentos de refugiados: “Se não houver referendo, teremos de pegar nossas armas de novo e lutar. Restará apenas essa opção: lutar”, disse-nos Ali. Em tom semelhante, Enhammed Khadad, o coordenador saaraui junto à Minurso, afirma que “a guerra está, mais do que nunca, na ordem do dia, e é a consequência, por certo, da obstinação do Marrocos, mas também do fracasso das Nações Unidas em assumir suas responsabilidades”.

Como se chegou a tal impasse

Sob a liderança internacionalmente reconhecida da Frente Popular de Libertação de Saquía El-Amra e Río de Oro (Frente Polisário), os saarauis resistiram tanto ao colonialismo espanhol, que espoliou o território entre 1884 e 1975, quanto à política expansionista marroquina iniciada pelo rei Hassan II e levada a cabo por seu filho, o atual monarca Mohamed VI.

Apesar de o ditador espanhol Franco ter prometido iniciar o processo de descolonização em meados de 1970, um acordo secreto entre Espanha, Marrocos e Mauritânia transferiu a administração do território para os dois últimos países.

Após uma sentença da Corte Internacional de Justiça, em outubro de 1975, ter negado laços de soberania entre Marrocos e Mauritânia, por um lado, e o território do Saara Ocidental, por outro, o contrariado Hassan II, com o apoio da França, dos Estados Unidos e das monarquias do Golfo Árabe, invadiu o país – um verdadeiro oásis de recursos naturais, com uma das maiores reservas em fosfato e pesca costeira.

A partir desse momento, teve início uma guerra que duraria até 1988, quando se iniciaram as negociações para um acordo de cessar-fogo. Centenas de milhares de saarauis, escapando das bombas napalm e fósforo branco lançadas pelo reino marroquino, buscaram refúgio na Argélia, onde construíram acampamentos próximos à região de Tindouf.

Temendo perder uma guerra para um povo numericamente inferior e com escassos recursos, o rei marroquino construiu um muro com mais de 2,7 mil quilômetros de extensão, cercado de milhões de minas terrestres que até hoje põem em risco a vida dos nômades que habitam os arredores. Os saarauis estão divididos hoje entre os acampamentos de refugiados, as zonas liberadas (cerca de 15% do território do Saara Ocidental) e os territórios, além daqueles que vivem na diáspora.

Desde o acordo de cessar-fogo, a Frente Polisário transmutou-se da luta armada para um movimento de resistência pacífica, e, além de seus esforços diplomáticos ao redor do mundo (são hoje mais de 80 países que reconhecem a República Árabe Saaraui Democrática (Rasd), creditou à ONU a condução do processo de paz que se perpetua indefinidamente.

À primeira vista, o impasse parecia decorrer da falta de acordo em torno de quem estaria apto a votar no referendo. Enquanto a convenção inicial do settlement plan (plano de acordo) girava em torno do Censo espanhol realizado no território em 1974, o rei Hassan II logo quis tomar vantagem da colonização massiva de marroquinos para garantir um resultado que lhe favorecesse no pleito.

Isso levou a inúmeros retrocessos nas negociações e à formulação de diversos planos de resolução, todos retumbantemente fracassados.

A Minurso está se transformando, para os saarauis, em um símbolo da ocupação, num fator de normalização da vida em exílio. Trata-se da única Missão de Paz do mundo que não conta com mandato de vigilância dos direitos humanos. Todo ano o dispositivo é proposto no Conselho de Segurança, mas recebe o veto da França, principal aliada do Marrocos.

Isso tem garantido que o regime de exceção em que vivem os saarauis nas zonas ocupadas permaneça praticamente silenciado diante dos holofotes da mídia.

Exploração ilegal dos recursos naturais, prisões arbitrárias, julgamento em tribunais militares, repressão brutal de protestos, expulsão de jornalistas e de observadores de organizações internacionais, todas essas são práticas cotidianas nas zonas ocupadas, que o rei Mohamed VI insiste em chamar de Saara Marroquino.

“Desde que o Marrocos chegou, foram mais de 4,5 mil casos de desaparecimento forçado, dos quais seguimos sem ter notícia de mais de 400 saarauis. Nossos irmãos e irmãs vivem sob constante medo nas zonas ocupadas”, explica Abeslam Omar, presidente da Associação de Familiares de Presos e Desaparecidos Saarauis (Afapredesa).

Para manter um baixo perfil do Saara Ocidental nos debates internacionais, a monarquia marroquina alimenta uma rede de lobby internacional que tem freado sistematicamente qualquer avanço no sentido de solucionar o conflito.

Cabos diplomáticos vazados em 2014 – divulgados pelo jornal The Guardian – entre o governo marroquino e seu representante permanente da ONU em Nova York, Omar Hilale, demonstram a tentativa da monarquia de pressionar decisões pró-marroquinas em órgãos da ONU.

Em uma das correspondências, datada de janeiro de 2013, Hilale informa que havia pedido a um oficial da ONU para tornar a ex-alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Navi Pilay, “consciente da importância de evitar qualquer engajamento com a eventual expansão do mandato da Minurso para os direitos humanos, ou a criação de um mecanismo independente no Saara Ocidental”.

Nesse cenário, a lógica do processo de paz inverte-se para uma realidade nua de poder. “É um ciclo vicioso em que a falência da operação de paz gera as tensões políticas que, por sua vez, levam a protestos nas zonas ocupadas, como os de Gdeim?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> Izik, em outubro de 2010, que foi a chama irradiadora da Primavera Árabe. Os protestos geram repressão marroquina, que fica sempre impune, e, assim, acumula-se mais frustração. Esse é o caminho para a guerra”, conta-nos nosso guia.

Khadad é partidário de opinião semelhante: “Hoje estamos mais próximos da guerra do que da paz. Os dois exércitos estão separados por menos de 120 metros na região sul. Este é um sinônimo do fracasso das Nações Unidas, porque ao longo dos 25 anos o Marrocos desafiou inúmeras vezes o direito internacional. O Marrocos chegou ao cúmulo de rechaçar a visita do secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, em março de 2016o, e a do sr. (Christopher) Ross (encarregado do secretário-geral para a Minurso). Você já imaginou? Um secretário-geral impedido de visitar uma missão de paz, que é parte de seu poder, de suas prerrogativas”, explica.

“O Marrocos expulsou o pessoal civil da Minurso, em março do ano passado, e se atreveu a violar o cessar-fogo na região de Guergerat, tentando asfaltar uma estrada até a Mauritânia, atravessando as zonas liberadas. E sem nenhuma resposta. Com todos esses desafios e bofetadas às Nações Unidas, não houve nenhuma reação da parte deles, assim que, no final, tivemos de assumir nossas responsabilidades, respondendo à violação do acordo de cessar-fogo com nossa presença (militar) em Guerguerat”, completa ele.

Entre a juventude e os militares saarauis, a maioria é a favor da retomada da guerra, e tem pressionado o governo do Estado em exílio a se preparar para tal. “Estamos preparados e atacaremos com todas as forças que temos, quando for dada a ordem. Sabemos que a situação pode explodir a qualquer momento”, conta-nos o ministro da Defesa da Rasd, Abdalahi Lehbib. Mas na direção política da Polisário, vemos sinais de que se deve ainda esgotar todas as opções.

“Um grande número de nossos cidadãos e cidadãs perdeu qualquer tipo de confiança nas Nações Unidas, e, de fato, a comunidade internacional alargou, injustificadamente, nosso sofrimento”, afirmou-nos Ibrahim Gali, presidente da Rasd. “Mas ainda existe um fio de esperança, que esperamos possa evoluir, pois a comunidade internacional tem plena capacidade de materializar a solução justa e definitiva”, conclui.

Gali está confiante de que, apesar das provocações e dos abusos, o Marrocos continua se isolando internacionalmente. Essa monarquia do Norte da África é o único país do continente não membro da União Africana, que na década de 1980 acolheu a Rasd como membro pleno.

No plano jurídico, a Frente Polisário também vem conquistando terreno. Uma sentença histórica do Tribunal de Justiça da União Europeia, em dezembro de 2016, anulou o Saara Ocidental do acordo de agricultura entre o Marrocos e a União Europeia, reconhecendo o Marrocos como potência ocupante de um território que não lhe pertence.

No entanto, ainda que otimista, o presidente Gali não hesita: “Nosso povo é pacífico por natureza e sempre travou uma luta limpa e justa, seja no terreno contra o agressor, seja no campo diplomático. Mas caso nos seja imposto novamente retomar outras vias de luta, não tenha dúvida de que empreenderemos também uma luta limpa e pura contra as forças do Estado ocupante marroquino”.

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