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O estopim
Trump conseguiu bagunçar o frágil equilíbrio diplomático no mundo, da Ucrânia ao Afeganistão


Mesmo pelos padrões caóticos de Donald Trump, o “acordo de paz abrangente” para o Afeganistão assinado pelos Estados Unidos em Doha, em fevereiro de 2020, foi um enorme gol contra. O pacto não previa um cessar-fogo obrigatório, a exigência de compartilhamento de poder ou qualquer roteiro político. Em troca de conversas ininteligíveis sobre a Al-Qaeda, Trump prometeu a retirada total e incondicional dos EUA e da Otan em 14 meses. Isso não foi pacificação, foi capitulação. O Taleban mal podia acreditar em sua sorte.
Trump esperava beneficiar-se politicamente por “trazer as tropas para casa”, embora a grande maioria tivesse saído do Afeganistão. Fora isso, ele era totalmente indiferente ao destino da população local. Militares dos EUA e do Reino Unido ficaram chocados, assim como diplomatas, políticos, agências humanitárias e analistas familiarizados com o Afeganistão. Mas seus avisos de catástrofe iminente foram ignorados.
Apesar de serem prejudicados pelo sigilo oficial, dois relatórios condenatórios neste mês, um de um órgão de vigilância pública dos EUA, outro do Comitê de Relações Exteriores (FAC, na sigla em inglês) do Parlamento do Reino Unido, revelam a incompetência quase inacreditável dos dois governos. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e o então secretário de Relações Exteriores, Dominic Raab, não conseguiram contestar efetivamente o pacto de Doha, e depois falharam em se preparar adequadamente para a retirada de 2021, segundo a conclusão da FAC.
Em 8 de julho de 2021, Johnson disse alegremente à Câmara dos Comuns que “não havia caminho militar para a vitória do Taleban”. Em 15 de agosto, Cabul caiu. O caos reinava. Evacuados morreram. Os cães foram salvos. Mas muitos funcionários e trabalhadores afegãos empregados pelo Reino Unido não o foram.
Vinte anos de construção da nação, ao custo de dezenas de milhares de vidas norte-americanas, britânicas e afegãs, foram destruídos em poucos dias vergonhosos. Johnson e Raab deveriam ter renunciado na época, mas não o fizeram. Ainda dá tempo, pessoal.
O relatório do Inspetor-Geral Especial dos EUA (Sigar, na sigla em inglês) atribuiu a calamidade a Trump, bem como a seu sucessor, Joe Biden, e ao então presidente afegão, Ashraf Ghani.
Biden certamente foi culpado. Ele deveria ter insistido em renegociar Doha e mantido algumas forças norte-americanas na base de Bagram, fora de Cabul. Os aliados europeus da Otan deveriam ter manifestado suas dúvidas com mais força.
Mas a responsabilidade recai principalmente sobre o homem que pôs em ação esse desastre geopolítico letal. Enquanto se gabava de sua proeza como negociador, Trump cedeu a um bando de chefes guerreiros feudais, que prontamente adotaram a tirania.
A tragédia afegã de hoje é apenas um aspecto do legado tóxico de Trump. O impacto negativo de sua presidência ainda é sentido em todo o mundo. Daqui a dois anos, o ex-presidente ou um clone republicano endossado por ele poderá reconquistar a Casa Branca. Sua agenda reacionária e disruptiva da “América Primeiro” pode mais uma vez ditar a maneira como os EUA lidam, ou deixam de lidar, com os grandes desafios globais da época.
O republicano sempre pareceu em dívida com Putin
Não é de admirar que a violência entre israelenses e palestinos pela ocupação na Cisjordânia e em outros lugares tenha atingido o nível mais alto desde 2014, segundo a ONU. Trump abandonou os esforços de paz e a solução internacionalmente preferida de dois Estados, ignorou a Autoridade Palestina e promoveu os “Acordos de Abraão”, focados nos negócios entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein.
Como nenhum dos Estados do Golfo ameaçava Israel, esse dificilmente foi o avanço histórico que ele alegou. Mas marginalizou ainda mais os palestinos, enquanto ajudava a legitimar os “crimes de apartheid”, como foram caracterizados pela Human Rights Watch, de sucessivos governos israelenses. Biden recentemente condenou mais uma expansão de assentamentos ilegais na Cisjordânia. Mas pouco fez para reviver o processo de paz. Talvez isso mude quando ele visitar Israel no fim deste ano. Talvez não.
Biden também parece ter-se curvado à pressão israelense sobre o Irã. Trump estupidamente renegou o acordo nuclear de 2015 com Teerã. Desde então, o Irã teria se aproximado cada vez mais de adquirir capacidade de armas nucleares.
O erro de Trump, juntamente com os repetidos assassinatos israelenses e norte-americanos de iranianos proeminentes, aumentou as tensões. Apesar de uma promessa firme, Biden não conseguiu, porém, reviver o acordo.
Trump fez papel de bobo ao tentar seduzir com armas nucleares o ditador norte-coreano Kim Jong-un. Sua cúpula que só serviu para fotos aumentou o prestígio de Kim com zero de retorno. Kim ultimamente tem disparado mísseis balísticos como se não houvesse amanhã. Do jeito que vai, talvez não haja.
Mas a Coreia do Norte é outra questão delicada sobre a qual Biden não tem nada de novo a dizer. Suas visitas à Coreia do Sul e ao Japão sublinharam o quanto ele negligenciou a China e a região do Indo-Pacífico, aparentemente sua principal prioridade no exterior.
As tentativas de Trump de pressionar a China puniram os Estados Unidos. Ele escolheu lutas comerciais que prejudicaram os exportadores dos EUA e boicotou a Parceria Trans-Pacífico, mais gols contra. Agora Biden tenta juntar os pedaços, tranquilizar Taiwan sobre o apoio militar dos EUA, fortalecer as alianças regionais e lançar um “Esquema Econômico Indo-Pacífico” multinacional para combater a China.
Embora alguns de seus problemas sejam autoinfligidos, a luta de Biden para reparar os danos globais causados pela fúria de quatro anos de Trump tornou-se infinitamente mais difícil com a guerra da Rússia na Ucrânia. Trump cortejou obsequiosamente Vladimir Putin. Ele, obedientemente, destruiu a Otan e a UE. E entrou em confronto com o arqui-inimigo de Putin – o líder da Ucrânia, Volodymir Zelenski – a quem notoriamente pressionou (digno de impeachment) na tentativa de desacreditar Biden. No cargo, Trump parecia inexplicavelmente em dívida com o chefe da máfia do Kremlin. E ainda parece.
Hoje, o imperialismo brutal de Putin ameaça, por sua vez, prejudicar o arqui-inimigo de Trump – Biden – ao atrapalhar suas prioridades internacionais e domésticas e, se a Rússia vencer, desacreditar a liderança global norte-americana.
A simetria é impressionante. O horror na Ucrânia, dirigido por Moscou, aumenta as chances de Joe em 2024. É quase como se o Chefão e o Donald estivessem a trabalhar juntos. Nem pense nisso. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O estopim”
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