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O doutrinador

O papa Bento XVI viveu mais preocupado em defender os dogmas da Igreja Católica do que em se conectar com os fiéis

Missão. O ex-pontífice, de 95 anos, foi fiel escudeiro de João Paulo II no combate à Teologia da Libertação, parte da cruzada anticomunista. Herdou um Vaticano dividido e cheio de escândalos - Imagem: Vatican Media/AFP
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Dois velórios dividiram a atenção do mundo ao longo da semana. Não por acaso, os homenageados simbolizavam uma religião. Em Santos, uma multidão pisava em um santuário, o gramado da Vila Belmiro, para prestar homenagens a Pelé, chamado de rei, mas que não deixava de ser uma divindade, a maior, do futebol, cuja legião de fiéis ao redor do planeta supera o cristianismo, o islamismo e o budismo. No Vaticano, mais de 200 mil católicos oraram pela última vez por Bento XVI, o papa emérito, o primeiro de sua posição em seis séculos a renunciar ao posto em vida. Fosse um atleta do esporte bretão, Joseph Ratzinger seria um zagueiro de várzea, brutamontes, instruído a evitar o ataque dos adversários a pontapés e caneladas, embora cultivasse a imagem de intelectual e chamasse a atenção das revistas de moda pelo modo peculiar de se vestir – seus chapéus eram classificados de “extravagantes” e os sapatos exclusivos chegaram a ser confundidos com peças da maison Prada, especulação desmentida pelos assessores do pontífice. No campo teológico, era um legítimo cruzado.

A hagiografia tende a transformar em virtude a renúncia em 2013, justificada por problemas de saúde. Seria o derradeiro gesto de desprendimento de um sacerdote que se definia como “simples e humilde servo na vinha do Senhor”. Historiadores e cronistas católicos certamente oferecerão uma versão diferente. Em boa medida, durante oito anos de pontificado, Bento XVI colheu o que plantou. ­Ratzinger assumiu uma Igreja dividida, manchada por intrigas e escândalos, após a morte de João Paulo II, de quem foi o mais bravo vassalo. Como chefe da Congregação da Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício da Inquisição, levou a termo a incumbência de combater o relativismo e o “esquerdismo” na Cúria, parte da luta anticomunista travada pelo polonês ­Karol Wojtyla – guerra na qual o ­Banco do ­Vaticano “exorcizou” até o dinheiro sujo de mafiosos e ditadores em nome dos desígnios divinos de combater os gentios. Missão dada, missão cumprida, poderia repetir Ratzinger, integrante da juventude hitlerista antes de seguir o caminho da fé (a seu favor pesa o fato de que nenhum jovem alemão escapava dos serviços militares naquela época). A Teologia da Libertação na América Latina foi dizimada e os resultados estão aí. Apartada dos humildes e necessitados, concentrada na liturgia e nos dogmas, ao gosto do intelecto do então cardeal, a Igreja latino-americana perdeu progressivamente terreno para o neopentecostalismo. O Brasil, outrora “maior país católico do mundo”, tornou-se terreno propício à expansão evangélica.

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