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O dobro ou nada
Macron aposta o futuro da França nas eleições legislativas antecipadas


São 20 horas de domingo, 7 de julho. As seções eleitorais acabam de fechar após o segundo turno das eleições legislativas francesas – a votação mais importante da história do país – e as primeiras estimativas aparecem nas telas de tevê. O presidente Emmanuel Macron perdeu a aposta. O Rassemblement National (Reagrupamento Nacional – RN) de Marine Le Pen mais que triplicou o número de deputados na Assembleia Nacional e chegou a 290 cadeiras, maioria absoluta. O próximo governo da França será de extrema-direita.
Conforme as pesquisas atuais, esse talvez não seja, por pouco, o resultado mais provável da votação que ocorrerá a menos de três semanas do início dos Jogos Olímpicos de Paris, quando os olhos do mundo estarão voltados para a França. Mas, certamente, poderia ser. O RN tem energia, e Macron está nas cordas. Depois de obter um recorde de 31%, mais que o dobro da chapa do presidente francês, nas eleições parlamentares da União Europeia, as primeiras pesquisas sugerem que o partido poderá ganhar até 265 assentos. Não precisaria de muito para ultrapassar o limite. “Em grandes áreas da França, especialmente fora das grandes cidades, em quase todos os segmentos da população – sexo, faixa etária, profissão –, o RN registra agora pontuações recordes”, resumiu Jérôme Fourquet, do instituto de pesquisas IFOP. “Para muitos eleitores, é apenas um partido como qualquer outro.” Rym Momtaz, especialista europeu do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, baseado em Paris, observou que o desempenho do partido de extrema-direita melhorou em todas as eleições desde 2017 e bateu recordes nas duas mais recentes. “Isto pode acabar muito feio.”
Mesmo uma maioria estreita daria ao RN consideravelmente mais influência e forçaria o presidente Macron a buscar alianças quase impossíveis, num Parlamento muito mais hostil e fraturado, para formar um governo perenemente vulnerável a votos de desconfiança. Le Pen e Jordan Bardella, o presidente do Rassemblement National, telegênico e amigo do TikTok, de 28 anos, ainda não publicaram um manifesto, na intenção de manter a porta aberta pelo maior tempo possível a possíveis alianças de direita no período que antecede a eleição. Mas uma declaração política foi distribuída aos candidatos, e as autoridades sugeriram que o programa provavelmente será um cruzamento entre o manifesto eleitoral europeu e a plataforma de campanha nas eleições nacionais de 2022, que lhe conferiram 89 assentos.
Segundo as primeiras pesquisas, o partido de Le Pen saltaria de 89 para 265 cadeiras no Parlamento
O folheto de uma página dos candidatos descreve suas prioridades, encabeçadas por custo de vida, imigração e segurança. Para além da promessa de reduzir as faturas de energia e o IVA sobre a eletricidade, o gás e o óleo para aquecimento, a maioria das promessas não é específica. Sobre a imigração, afirma que um governo liderado pelo RN “reduzirá drasticamente a imigração legal e ilegal”. No que diz respeito à segurança, terá como objetivo “pôr fim à leniência judicial com infratores e criminosos”. Promete também “combater a concorrência desleal” para os agricultores, aumentar o apoio à saúde pública, “acabar com a burocracia para famílias e empresas”, “cortar os custos da imigração” e “reduzir fraudes em benefícios e fiscais”. No exterior, vai “defender a soberania e os interesses da França”.
“Obviamente, o programa do RN será aplicado”, disse Le Pen recentemente. “Nosso roteiro será a série de propostas que fizemos no passado à população francesa, e que nos parecem essenciais, sobre poder aquisitivo, segurança e imigração.”
Até agora, muito vago. As promessas do partido para 2022 eram mais específicas: expulsar mais migrantes, impedir o reagrupamento familiar, dar preferência aos cidadãos franceses em empregos, benefícios e habitação social e expulsar os imigrantes desempregados há mais de um ano. Defendia privatizar a rádio e a televisão públicas francesas, promessa repetida agora, e instaurar uma “presunção de legítima defesa” para os agentes envolvidos em casos de suposta violência policial, destinada a “restaurar a autoridade e aumentar o moral”. O objetivo era devolver a idade de aposentadoria de 64 para 62 anos (60 para aqueles que começaram a trabalhar aos 16 ou 17), oferecer um empréstimo de 100 mil euros, o equivalente a 580 mil reais, sem juros, para incentivar a compra da casa própria, reduzir o imposto sobre herança para muitos e isentar os menores de 30 anos do Imposto de Renda. Juntamente com as reduções planejadas pela legenda no IVA sobre a energia e outras medidas, como a renacionalização das autoestradas francesas, os economistas em 2022 avaliaram o golpe para as finanças públicas em 120 bilhões de euros por ano, ante apenas 18 bilhões de euros em poupanças.
Divisão. Jovens protestam contra a ascensão da extrema-direita, que promete aos policiais o “excludente de ilicitude” – Imagem: Sebastien Salom-Gomis/AFP e Olivier Chassignole/AFP
O RN propôs financiar esse gigantesco aumento dos gastos públicos por meio da tributação dos altos lucros empresariais e as poupanças dos seguros de vida, bem como pela retenção de algumas contribuições para o orçamento da União Europeia, mas o grupo de estudos Instituto Montaigne estimou o custo líquido provável em mais de 3,5% do PIB. As associações industriais afirmaram que os planos do RN são “incompatíveis com a competitividade e a prosperidade do nosso país” e aumentariam ainda mais a dívida de 3,2 bilhões de dólares, cerca de 17 bilhões de reais, da França. O atual ministro das Finanças, Bruno Le Maire, alertou para um “cenário à Liz Truss”, em referência à ex-primeira-ministra britânica.
Le Pen reconheceu “restrições” sobre o que o partido pode fazer no governo sem um presidente solidário, enquanto Bardella disse que “escolhas terão de ser feitas” e a reforma das aposentadorias poderá ter de esperar por “uma segunda fase”. O RN viu os próximos anos como uma “preparação” para sua entrada no Palácio do Eliseu em 2027, disse Le Pen ao canal de tevê TF1, antes de reconhecer que algumas medidas, incluindo um referendo sobre imigração para permitir muitas de suas regras de “preferência nacional”, ainda não seriam possíveis. Crucialmente, várias das medidas propostas, entre elas a maioria dos seus planos de “preferência nacional” e possivelmente a redução do Imposto de Renda para menores de 30 anos, serão provavelmente consideradas inconstitucionais e exigiriam uma reforma da Carta Magna. Isso seria problemático numa “coabitação” com um presidente relutante: mudar a Constituição da França exige maioria de três quintos nas câmaras Baixa e Alta combinadas, ou aprovação num referendo que só pode ser convocado pelo chefe de Estado.
Por convenção – e porque não querem ver seu governo derrubado por um voto de desconfiança ou por uma moção de censura do Parlamento –, o presidente nomeia um primeiro-ministro e um gabinete que terá o apoio da maioria na Câmara Baixa.
A França passou por várias “coabitações” em anos anteriores – quando o presidente está num campo diferente do Parlamento e do governo. “Mas nunca houve uma disputa entre dois políticos tão opostos ideologicamente quanto Macron e Le Pen”, avalia Mujtaba Rahman, da consultoria Eurasia Group. “A Constituição da França é ambivalente e não foi testada em tal situação. Nas coabitações anteriores, ambas as partes respeitavam os mesmos princípios fundamentais. O programa de Le Pen, se ela tentasse impô-lo, entraria em conflito quase total com aquele de Macron.” O atual presidente é centrista, pró-empresas, pró-Europa, pró-Ucrânia. Le Pen é nacionalista, populista, anti-UE e amiga de Moscou. Os planos de migração de Le Pen violariam as leis europeias de direitos humanos, disse Rahman, e suas preferências nacionais são incompatíveis com a adesão ao mercado único da União Europeia.
Se perder, Macron terá poderes limitados para deter o avanço da agenda extremista
A Constituição francesa afirma claramente que o primeiro-ministro “dirige a ação do governo e assegura a execução das leis”. Cabe ao governo a maior parte da política interna, enquanto a política externa e de defesa ficam principalmente sob responsabilidade do presidente do país. Isso significa que áreas políticas fundamentais, como as pensões, o auxílio-desemprego, a educação, os impostos, a imigração, a nacionalidade, o emprego público, a lei e a ordem e a legislação trabalhista ficariam todas sob a alçada de um Parlamento e de um governo dominados pela extrema-direita.
Embora os presidentes franceses gozem de poderes consideráveis em comparação com muitos outros chefes de Estado, se o RN tiver uma maioria estável, terá margem suficiente para implementar muitas de suas políticas: os primeiros-ministros “coabitantes” anteriores aprovaram medidas às quais os presidentes se opunham, entre elas as 35 horas de trabalho semanais e a reprivatização de empresas estatais. E mesmo se Macron mantivesse, ao menos em teoria, o controle da política externa, como a continuação do apoio francês à Ucrânia, ainda precisaria da aprovação do Parlamento para financiar o futuro apoio a Kiev como parte do orçamento francês.
Há uma certa medida que o presidente poderia tomar para restringir as ações de um governo liderado pelo RN. “Ele não tem poder de veto”, observou Rahman, mas pode recusar-se a assinar decretos governamentais e atrasá-los, encaminhando-os para um conselho constitucional independente. Os juristas acreditam, no entanto, que o conselho provavelmente defenderia o direito do governo de pôr em prática muitas partes de sua agenda interna – e os governos também podem, como fez Macron, usar poderes constitucionais especiais, como o artigo 49.3, para aprovar leis. O presidente ainda tem, é claro, o direito de se dirigir à nação ao vivo na televisão, e poderia usá-lo para atacar constantemente um governo liderado pelo RN, embora, como apontam muitos analistas, sua popularidade esteja agora tão reduzida que é duvidoso avaliar quanta influência isso teria.
Evidentemente, não há certeza de que o RN obterá a maioria, ou mesmo se será capaz de formar uma maioria em aliança com outros. O resultado mais provável, segundo as pesquisas de opinião e a maioria dos especialistas, é mais um Parlamento suspenso. Mas de qualquer forma a França enfrentará alguns anos difíceis. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
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