Mundo

cadastre-se e leia

O circo da bola

A Copa do Mundo do Catar, como outros eventos esportivos, encobre os abusos do país anfitrião

Dispêndio. O governo catari gastou 220 bilhões de dólares para organizar o Mundial, o que faz do próximo o torneio mais caro da história - Imagem: FIFA/Qatar2022
Apoie Siga-nos no

O Catar é uma nação rica do Golfo, conhecida tanto por suas enormes reservas de petróleo quanto por seus flagrantes abusos dos direitos humanos. É uma ditadura em que as mulheres precisam pedir permissão aos tutores masculinos para se casar ou trabalhar em muitos cargos públicos, em que ser gay é crime e pode resultar em pena de prisão, em que trabalhadores migrantes são tratados de forma aterradora e em que jornalistas são presos por reportar criticamente a política doméstica. Tudo isso será, porém, inevitavelmente minimizado quando os olhos do mundo se voltarem para o país durante a Copa do Mundo de 2022, no próximo mês.

Os líderes do Catar sabem disso e pagaram caro. As estimativas são de gastos de 220 bilhões de dólares, de longe a Copa do Mundo mais cara de todos os tempos. Assim, seleções, torcedores internacionais, a mídia mundial e dignitários estrangeiros irão devidamente ao país para um torneio esportivo internacional que tem sérias implicações ambientais e, alguns preveem, deixará enorme pegada de carbono. Segundo estimativas conservadoras, ao menos 6,5 mil trabalhadores migrantes perderam a vida durante as obras.

Esta Copa do Mundo é apenas o mais recente de uma longa linha de eventos esportivos internacionais caros que foram sediados por nações acusadas de violações fundamentais dos direitos humanos. Os Jogos Olímpicos de Verão de 2008 e os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 na China, os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 na Rússia, o Grande Prêmio do Bahrein, o Campeonato ­Mundial de ­Atletismo de 2019 no Catar, a luta de ­Anthony Joshua de 2019 na ­Arábia ­Saudita… Há uma tendência indiscutível de grandes eventos esportivos realizados por países ricos, mas desagradáveis.

Poderia haver algo mais moralmente decrépito do que uma política de neutralidade em relação ao genocídio? Este é o reflexo de uma série de tendências. Há o fator de pressão das ditaduras ao redor do mundo que procuram lavar suas ­reputações por meio do esporte internacional – 200 bilhões de dólares em uma Copa do Mundo não apenas garantem visitantes internacionais e entretenimento esportivo, mas também relações públicas que o dinheiro normalmente não pode comprar. Isso é particularmente valioso em uma época em que os Estados do Golfo reconhecem que em algum momento o petróleo e o gás acabarão e, portanto, procuram construir outras fontes de energia no cenário mundial.

Em resposta, as competições são cada vez mais caras, à medida que as democracias que precisam justificar as despesas para os eleitores são excluídas do mercado. A Copa do Mundo de 2006 na Alemanha custou “apenas” 4,3 bilhões de dólares. Os níveis de corrupção financeira no esporte internacional – órgãos governamentais como a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional têm sido notoriamente permeáveis a subornos caros e acordos obscuros em troca de votos nos bastidores – pioraram as coisas.

O desrespeito aos direitos humanos é flagrante no país, mas a Fifa preferiu tapar os olhos

Tudo isso significa que os burocratas esportivos muitas vezes enfrentam escolhas nada invejáveis, por exemplo, entre Pequim na China e Almaty no Cazaquistão para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, que acabou vencido pelo primeiro, exigindo a fabricação de neve falsa com 49 milhões de galões de água. Órgãos esportivos de governo avançam no argumento de que conceder competições a países com registros questionáveis de direitos humanos chama atenção e escrutínio para seus abusos, incentivando a liberalização. Sebastian Coe, presidente da Associação Internacional de Federações de Atletismo, afirmou no Campeo­nato Mundial de Atletismo de 2019 no Catar que o esporte pode de maneira única “brilhar os holofotes sobre questões” e é o “melhor diplomata”. Há, no entanto, pouca evidência acadêmica sobre os efeitos. As Olimpíadas de Munique de 1936 foram, sem dúvida, um golpe de propaganda para os nazistas.

As competições esportivas levariam a melhoras apenas se os órgãos esportivos adotassem uma abordagem dura com as nações anfitriãs, estabelecendo condições rigorosas que melhorem os registros de direitos humanos além do perío­do da competição em si. Mas eles não estão, geralmente, dispostos a tanto. Na verdade, eles são muito mais propensos a equívocos e a protestar contra sua neutralidade sobre os mais terríveis abusos dos direitos humanos. Thomas Bach, o presidente do COI, quando questionado sobre o que diria aos uigures chineses separados à força de seus filhos e internados em campos de concentração, declarou às vésperas dos Jogos Olímpicos de Pequim: “A posição do COI deve ser a de dar neutralidade política… se ficarmos no meio de intenções e disputas e confrontos de poderes políticos, estaremos colocando os Jogos em risco”. Poderia haver algo mais moralmente decrépito do que uma política de neutralidade em relação ao genocídio?

O problema não começa e termina com o esporte. Na verdade, a abordagem que os organismos esportivos internacionais têm de países como os Estados do Golfo é apenas um reflexo da política internacional. Competições esportivas internacionais não deveriam ser concedidas a governos com registros terríveis de direitos humanos. Mas esta é uma linha que a liderança política ocidental, não apenas esportiva, provou não estar muito disposta a cruzar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O circo da bola “

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo