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O Brexit, os filósofos e a nau (ou o avião) do Estado

Entre outros temas, a saída do Reino Unido da União Europeia desperta um debate sobre o papel dos especialistas e das elites intelectuais na política

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Os economistas Guglielmo Barone e Sauro Mocetti, do Banco da Itália, divulgaram um estudo sobre a arrecadação de impostos em Florença de 1427 a 2011, no qual mostram que os sobrenomes das famílias mais ricas da cidade são os mesmos desde os tempos de Cosimo de Medici. Sua conclusão foi que a “meritocracia” supostamente garantida pela concorrência capitalista é uma farsa.

Uma vez chegadas ao topo, as conexões sociais de famílias poderosas são capazes de proteger os privilégios dos seus rebentos por mais de 500 anos e 18 gerações de guerras e reviravoltas políticas. Com isso, obviamente se desperdiça os talentos das pessoas de origem mais modesta. “Encontramos evidências de um ‘piso de vidro’ que protege os descendentes da classe superior de caírem pela escada econômica”.

Por sua vez, os economistas britânicos Gregory Clark, da Universidade da Califórnia e Neil Cummins, da London School of Economics, fizeram constatação semelhante ao se debruçar sobre as matrículas nas elitistas universidades de Oxford e Cambridge de 1170 a 2012. Os mesmos sobrenomes voltaram a ser matriculados por séculos e séculos a fio, desde antes de Ricardo Coração de Leão subir ao trono.

Essa realidade não se alterou após a Revolução Industrial e nem mesmo depois de o acesso a essas universidades ser aberto a todos os estudantes por meio de um exame padrão. Mas dessa mesma realidade tiraram a conclusão exatamente oposta: as pessoas nascidas em berço de ouro merecem seus privilégios.

Para eles, isso prova a transmissão hereditária da “competência social”, misto de ambição, motivação e talento, mesmo se traços reconhecidamente genéticos, como a estatura, não se mantiveram tanto quanto o status.

A revista liberal The Economist criticou o estudo, cujo determinismo genético poderia justificar o racismo. Clark, naturalmente formado em Cambridge, retrucou: “Claro que poderia. Mas eu estudo a mobilidade social para tentar entender quais são as forças na base da nossa sociedade. Não serei um bom pesquisador se só quiser buscar explicações que me façam sentir melhor sobre o mundo. Dentro dos grupos de elite que estudamos, a manutenção do status parece ter uma explicação genética”.

O interessante não é só as duas equipes de especialistas respeitados chegarem a conclusões opostas sobre a mesma imobilidade social, mas também ambas se limitarem no fundo a acrescentar dados a teses que permanecem as mesmas desde, pelo menos, o século XIX.

Karl Marx e Max Weber nos diziam sobre esses temas quase o mesmo que Barone e Mocetti, assim como Herbert Spencer e Francis Galton tinham as mesmas certezas de Clark e Cummins. E podemos estar certos de que todos os quatro, se pudessem tomar conhecimento desses estudos do século XXI, concluiriam que suas convicções foram mais uma vez confirmadas.

Os leigos têm todo o direito de concluir, por sua vez, que as crenças de cientistas e pesquisadores autorizados não estão mais livres de ideologia que as suas próprias, principalmente no que se refere às ciências sociais e quando seus próprios interesses e formação estão em jogo.

O fato de alguns especialistas terem se educado em um país republicano no qual o pensamento marxista sempre foi respeitado e outros em uma monarquia vaidosa de suas tradições e privilégios hereditários talvez faça mais diferença do que os pormenores metodológicos.

Se não justifica, isso contribui para explicar a desconfiança crescente das massas populares ante as advertências de especialistas de qualquer área.

Ante o desfecho do referendo britânico, o matemático e investidor libanês-americano Nassim Nicholas Taleb, autor de A Lógica do Cisne Negro, analista de risco e um dos gurus de David Cameron, culpou os peritos e repetiu uma postagem de março:

“O que vemos por todo o mundo, da Índia ao Reino Unido e EUA, é a rebelião contra a panelinha dos burocratas e jornalistas que não põem a pele em jogo, essa classe de peritos paternalistas e semi-intelectuais com alguma educação na Ivy League [as oito universidades mais tradicionais da elite dos EUA], Oxford, Cambridge ou similar e que nos dizem o que fazer, o que comer, como falar, como pensar e em quem votar.

“Com estudos de psicologia reprodutíveis menos de 40% das vezes, conselhos nutricionais revertidos após 40 anos de gordofobia, análises macroeconômicas piores do que astrologia, artigos de microeconomia errados 40% das vezes, a nomeação de um Bernanke sem a menor noção de risco e testes farmacêuticos reprodutíveis menos de um quinto das vezes, as pessoas estão perfeitamente autorizadas a confiar em seu próprio instinto ancestral e escutar a avó, cujo histórico é melhor do que o desses estúpidos formuladores de políticas”.  

A verdade, porém, é que 40% às vezes é melhor do que nada e os especialistas, por mais que sejam vulneráveis aos próprios preconceitos e vieses, têm mais chance de discernir as questões objetivas por trás de um problema novo, obscuro ou complexo.

A avó e o instinto ancestral podem ter acertado muitas vezes sobre canjas de galinha e dores de cotovelo, mas dificilmente nos ajudarão muito quando se trata de tratar um câncer, instalar uma rede de computadores ou combater o aquecimento global.

Por outro lado, muitos especialistas tendem de fato a não só superestimar suas certezas e sua isenção e empinar o nariz para os leigos, como também a pretender substituir a democracia por uma tecnocracia autoritária, sem se envergonhar de dizer isso em público. Um exemplo extremo foi dado, às vésperas do Brexit, pelo biólogo Richard Dawkins, um pesquisador e teórico respeitado em seu campo, ao se revelar contrário não só à saída do Reino Unido da União Europeia, como à própria ideia de referendo e soberania popular:

“Como ousam confiar uma decisão tão importante a ignaros como eu? Você quer que seu cirurgião conheça anatomia. Você quer que o piloto de sua linha aérea tenha o conhecimento cerebral e a destreza cerebelar refinada por muitas e penosas horas de voo… Por que você confiaria o futuro a eleitores ignorantes? Ao menos sou honesto sobre meu elitismo.”

Exceto pela substituição do clássico capitão de navio por um piloto de avião, é o mesmo argumento de Platão ao advogar seu ideal de uma aristocracia de filósofos contra a democracia ateniense no livro VI de A República.

É especialmente perturbador por vir de um materialista, empirista e evolucionista que certamente não crê na teoria platônica de que o mundo concreto é a mera sombra de ideias eternas e objetivas acessíveis apenas à contemplação dos sábios, entre os quais a soberana ideia do Bem.

Mesmo que os especialistas saibam algo mais do que os leigos e tenham a responsabilidade de alertá-los sobre as possíveis consequências de certas práticas e decisões, isto não lhes dá o direito de ditar o certo e o errado.

Quero um cirurgião abalizado, mas depois de ponderar alternativas e me convencer de que a operação que ele sabe fazer é a melhor opção disponível à luz da medicina atual e dos meus propósitos. Se pretendo viajar, quero um piloto qualificado na cabine do avião, mas não lhe dou o direito de escolher para onde vou.

Analogamente, em uma questão como o Brexit, peritos têm o direito e o dever de esclarecer aos leigos quais são, ao seu juízo, as possíveis consequências sociais, políticas e econômicas de seu voto, mas não o de lhes dizer qual o voto certo ou errado. Praticamente toda decisão política tem ganhadores e perdedores e o interesse dos especialistas não é necessariamente o da maioria, até porque grande parte deles pertence à elite ou depende de sua aprovação para sustentar seu modo de vida e seu prestígio intelectual.

Que a decisão desencadeasse uma provável queda da libra no mercado (já confirmada, mas não necessariamente ruim para todos os britânicos) e uma possível recessão a médio prazo não a faz automaticamente uma decisão ruim ou estúpida, como pareciam presumir financistas e economistas.

Talvez o eleitor esteja disposto a pagar esse preço para atingir um objetivo alternativo ou expressar sua revolta. Talvez a abordagem mais consequente tivesse sido menos pretensamente objetiva e “científica” e mais subjetiva e “psicanalítica”, no sentido de pôr em debate as causas profundas da rejeição à União Europeia e aos imigrantes e rever os próprios objetivos políticos dessa maioria empobrecida e ressentida, embora isto certamente representasse uma ameaça maior ao status quo do que a própria ruptura da UE.

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