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O amor em tempos de guerra

Uma saga de 3,7 mil quilômetros em meio ao conflito para encontrar a noiva e os pais

O amor em tempos de guerra
O amor em tempos de guerra
Apocalipse. Cidades destruídas, estradas fantasmas... Na invasão que passa de três meses, com as negociações paralisadas, percorrer a Ucrânia é uma aventura digna dos filmes de ficção científica. Na vida real, a redenção nunca está, porém, no fim da linha. Ou está? - Imagem: Aris Messinis/AFP e Presidência da Ucrânia
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São dez minutos de carro da casa de Serhi Belyaev, na aldeia de Tsyrkuny, até a residência de sua noiva em Kharkiv, a segunda cidade da Ucrânia. Uma curva rápida para oeste na Rua Soborna, pela autoestrada E40 até a rodovia Lesia Serduika, e você chegou. Era assim, até que veio a guerra.

Levou apenas algumas horas para as forças russas invadirem a aldeia de Belyaev, em 24 de fevereiro, enquanto avançavam para Kharkiv, a grande cidade ucraniana mais próxima da fronteira russa.

Vidas foram alteradas em toda a Ucrânia naquela manhã. Para Belyaev, a linha de frente do maior conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial estava agora entre ele e sua namorada, ­Nataliy Drozd, 28 anos, e os pais dele.

Lesia Serduika, a estrada bem conhecida para a cidade, tinha se transformado numa terra de ninguém intransitável. Belyaev estava isolado, preocupado com sua mãe doente, Galina, de 66 anos, e decidido a ficar com sua namorada aterrorizada. Então Belyaev, um jogador de pôquer profissional de 32 anos, teve uma ideia, uma aposta. Ele meditou a respeito, inicialmente a rejeitou e depois se decidiu. Trocaria a viagem de 10 quilômetros por uma odisseia de 3,7 mil quilômetros. “Para a fronteira russa, através da Rússia até a Letônia, para a Lituânia e Polônia e depois de volta para o oeste da Ucrânia, para chegar a Kharkiv pelo oeste”, diz. “Era meio louco, sim.” Mas era possível.

O que se seguiu foi uma aventura extraordinária que chamou atenção da polícia secreta do Kremlin, o FSB, que, com razão, suspeitava que Belyaev entregaria posições russas ao exército ucraniano. Ele atravessou cidades sob fogo cruzado, contra o fluxo de refugiados, e teve momentos de dúvida, admite. “Mas apenas rapidamente. Eu tinha de chegar à minha noiva.”

Antes da invasão, Serhi Belyaev percorria 10 quilômetros até a casa de Nataliy

Nos primeiros dias da guerra, Belyaev e seu irmão Yuri, de 45 anos, fugiram de Tsyrkuny, que estava em chamas, para Strilecha, aldeia um pouco ao norte, ocupada, mas não sob fogo. Belyaev começou a conversar com famílias que queriam chegar à Polônia. Ele decidiu que se juntaria a um comboio de quatro carros em seu Honda Accord preto. “O carro precisava de reparos nos freios e na transmissão”, lembra. “Fazia barulhos terríveis, mas não havia outra opção.”

Yuri, que tem problemas cardíacos, optou por ficar para cuidar de seu cachorro. Seu lugar no carro foi ocupado por dois estranhos: Emil, 28 anos, e a noiva, Katya, 22. No dia 4 de abril, às 13 horas, eles partiram. Foi um começo agitado. “Soldados russos nos disseram que a fronteira, a um quilômetro de distância, estaria aberta. Mas não estava”, lembra Belyaev. A única opção viável era dirigir 70 quilômetros por terras ocupadas, até uma segunda passagem de fronteira. “Esses 70 quilômetros foram os mais difíceis”, recorda o ucraniano. “Havia muitos postos de controle e, no meio do caminho, encontramos alguns soldados russos que não nos deixaram passar.”

O comboio foi recusado. Eles foram dirigidos pelos soldados para o que logo descobriram ser um campo de filtragem em um prédio administrativo local. Suas vidas estavam em jogo. “Fomos todos interrogados. Eles suspeitavam muito de Emil, que era de Luhansk, no leste, e não tinha passaporte, pois havia sido queimado no início da guerra. Seu telefone também estava quebrado por causa da umidade do porão onde ele tinha se escondido dos bombardeios.”

Emil foi despido até ficar de cueca para os russos procurarem tatuagens que pudessem oferecer evidências de uma filiação militar. Então eles passaram pelo telefone de Belyaev. “Eu tinha apagado tudo”, diz. “Se não tivesse, estaria morto. Quando a guerra começou, não fiquei sentado de mãos nos bolsos. Enviei a localização de comboios militares russos para amigos na defesa territorial.”

O grupo finalmente recebeu os documentos necessários às 16 horas do primeiro dia da viagem. Um toque de recolher russo às 17 se aproximava. Aqueles que o infringissem poderiam ser fuzilados. Belyaev pisou fundo, sem saber se estava no caminho certo, pois não havia cobertura de dados nem sinais de trânsito, e eles estavam em estradas de terra. “Tivemos de atravessar uma ponte no vilarejo de Rubizhne. Eu a vi em construção quando tinha 10 anos, quando meu irmão me levou para pescar”, diz Belyaev. Agora estava em ruínas. “Vi o seu nascimento e vi sua morte”, acrescenta. Havia apenas uma pista em funcionamento. “Não aguentaria muito peso”, descreve. “Fiquei apavorado naquele momento. Era uma queda de 20 metros até o rio lá embaixo.”

Maratona. Migrantes em fuga, refugiados no próprio país, de um drama sem prazo para acabar – Imagem: Ministério da Defesa Russo/Sputnik/AFP e Nikolay Doychinov/AFP

Mas eles conseguiram – e no posto de controle seguinte o comboio de carros passou. O humor do grupo melhorou. Mas o desastre aconteceu. Um dos motoristas ficou entusiasmado. “Ele estava dirigindo um pouco mais depressa e caiu num buraco com força.” As rodas dianteiras do carro ficaram bastante danificadas e não havia como seguir viagem. Eles dirigiram até a cidade mais próxima, ­Vovchansk, com preocupação. “Mas, novamente, pura sorte”, diz Belyaev. “O primeiro morador a quem perguntei onde havia uma oficina disse que era mecânico. Consertou o carro tão rapidamente que pudemos seguir viagem logo depois.”

Já eram 7 da noite, e a fronteira deveria fechar às 8. Mas o mecânico estava confiante de que passariam. “Fomos, mas não havia eletricidade, então estava escuro como breu”, lembra Belyaev. “Eu era o carro líder. Então, de repente, apareceu um soldado com uma metralhadora. Estávamos na fronteira.”

Demorou cinco horas para atravessar, depois de um interrogatório completo. “Então decidimos virar à direita, não sei o motivo, porque foi o caminho errado”, diz. Os soldados piscaram as luzes de seus veículos militares. Eles tinham as metralhadoras expostas e agora estavam desconfiados e agressivos. “Explicamos que não sabíamos o caminho.” Os soldados conferiram. “Mas aceitaram e acenaram para passarmos.”

Enquanto o comboio seguia seu caminho, Emil brincou: “O que precisamos fazer para levar um tiro?” Agora, às 3 da manhã do segundo dia, eles estavam na Rússia de Putin. “Enviei uma mensagem para Nataliy, dizendo a ela onde eu estava, apenas explicando que era mais seguro lá”, diz Belyaev. “Ela estava realmente com raiva, porque eu tinha deixado o cachorro para trás. Eu não lhe contei sobre meu plano de voltar. Estava preocupado que minhas comunicações fossem interceptadas.”

O comboio seguiu em direção a ­Belgorod, a grande cidade russa mais próxima. Quase imediatamente eles foram parados mais uma vez. Era o FSB, sucessor da KGB soviética. “Cada um foi interrogado de novo”, diz Belyaev. “Mas eu sabia que meu telefone estava limpo. Eles me perguntaram sobre meu trabalho. Devemos ter passado 20 minutos a falar sobre pôquer.”

“O lar é o lar”, disse Nataliy sobre a longa jornada do noivo

Eles chegaram em Belgorod por volta das 5 da manhã, onde dormiram em seus carros do lado de fora de um supermercado. “Mas ali era território inimigo. Sabíamos que tínhamos de dormir menos e dirigir mais.” Eles se levantaram novamente duas horas depois. Belyaev tocou música no telefone. A trilha sonora, ri, foi Gwen Stefani, Jay-Z e Limp Bizkit.

A viagem os levou por Kursk, ­Roslavl, Smolensk e Velikiye Luki, onde chegaram às 5 da manhã do segundo dia para dormir um pouco. Exaustos, eles finalmente alcançaram a fronteira da Letônia, em Ubylinka, às 10 horas do dia seguinte, 6 de abril.

Demorou 16 horas para passarem pelo controle de fronteira. “Mas foi um alívio”, lembra Belyaev. “Senti que era um homem com direitos novamente. Liguei para Nataliy e meus pais e contei a eles sobre meus planos reais. Nataliy disse: ‘Você tem a chance de ficar em segurança. Você deve ficar aí, porque os homens entre 18 e 60 anos não podem sair da Ucrânia. Podemos ficar juntos quando a guerra terminar’”.

Marcha. Os tanques russos ocupam as principais áreas da Ucrânia

Belyaev não teve tempo para pensar. Eram 2 da manhã e eles enfrentavam uma viagem de mil quilômetros até a Polônia, via Letônia. Ao meio-dia pararam em Kaunas, no sul da Lituânia. “Este foi o primeiro Wi-Fi, no McDonald’s. Liguei para os meus amigos e meus pais. ‘Estou comendo McDonald’s. E vocês?’”, ele riu.

O comboio partiu novamente, desta vez para Varsóvia, e chegou às 7 da noite. Seus companheiros de viagem haviam alcançado o seu destino: um grande salão de exposições transformado em centro de refugiados. Belyaev teve de tomar uma decisão. Ele ponderou durante uma estada de sete dias em Varsóvia. Os riscos pareciam sérios. Ele também estava doente, com sintomas de Covid. Mas sentiu que tinha de continuar. “Eu disse a Nataliy que queria voltar. Eu disse: ‘Espere por mim, baby’”.

Em 14 de abril, às 2 da tarde, Belyaev deixou Varsóvia para a fronteira, em ­Rava-Ruska, juntamente com um comboio humanitário. Eles chegaram a Lviv, a cidade mais ocidental da Ucrânia, à meia-noite e carregaram alguns suprimentos antes de partir. Esta era a Ucrânia em tempo de guerra: cada estrada representava um risco. “Muitas estradas foram fechadas, provavelmente adicionaram 100 quilômetros à nossa jornada de 550. Mas não é nada quando você dirige por 3,7 mil quilômetros em vez de 10, para chegar em casa.”

O jogador de pôquer chegou em Kiev ao meio-dia de 15 de abril e dormiu na casa de um amigo – pela primeira vez em uma cama em 11 dias. Na manhã de 18 de abril, partiu de Kiev para Poltava, cidade a meio caminho de seu destino, onde morava seu irmão mais novo. “Foi a primeira vez que dirigi sozinho, achei difícil”, diz. Em ­Poltava, ele pegou remédios para seus pais e agora estava a caminho da linha de frente da guerra na Ucrânia, onde sua aldeia permanecia isolada e a batalha de Kharkiv foi travada. Belyaev não teve dúvidas. Talvez fosse hora de uma pequena surpresa.

“Liguei para meu pai e disse que um voluntário estava por perto com suprimentos, então ele devia descer, e ele veio me encontrar”, sorri. Os homens se abraçaram. Com sua mãe, as lágrimas correram. Então, a apenas 50 metros da casa de Nataliy, ele foi parado pela polícia. “Eles desconfiaram dos cobertores e do estado do meu carro. Perguntaram se eu estava dormindo nele e por quê. Foram apenas os carimbos do meu passaporte que os convenceram da minha história.” Finalmente, Belyaev estava de volta para a mulher que amava. Será que ele tinha tomado a decisão certa ao voltar? ­Nataliy sorri: “O lar é o lar”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1210 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O amor em tempos de guerra”

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