Mundo
O agente laranja
O governo Trump persegue juízes, censura livros, pressiona universidades e tenta silenciar os críticos


O filme Sem Saída, lançado em 1987 e estrelado pelo galã Kevin Costner e pelo magistral Gene Hackman, é uma paródia dos romances de espionagem que povoaram as prateleiras das livrarias e a mente dos leitores no auge da Guerra Fria. Para encobrir um feminicídio, a personagem de Hackman inventa a teoria de que a amante teria sido assassinada por um espião russo enviado para desestabilizar o governo dos Estados Unidos. O escolhido para investigar a suposta rede de agentes comunistas é um insuspeito oficial da Marinha, um patriota interpretado por Costner. Ao fim e ao cabo, o marinheiro era, ele mesmo, um espião russo. Não só a tragédia se repete como farsa. A ficção também. Quase 40 anos depois do filme, a Casa Branca parece ter virado um “aparelho” de infiltrados dispostos a destruir o american dream. Donald Trump, o “Rasputin” Elon Musk e o resto da trupe mambebe não têm o charme de Costner ou o talento de Hackman, mas a ausência desses traços da personalidade vitais às estrelas de Hollywood é compensada por uma falta absoluta de escrúpulos e bom-senso. O perigo para os cidadãos norte-americanos não está em Pequim, a milhares de quilômetros. Ronda a esquina. Em menos de cem dias de mandato, Trump iniciou uma cruzada contra juízes que contestam suas decisões, chantageou universidades, censurou livros e investiu contra quem pensa diferente, tenha ou não nascido no país.
O toque de incompetência e despreparo só piora o ambiente. Na segunda-feira 24, o jornalista Jeffrey Goldberg, editor-chefe da prestigiosa revista The Atlantic, considerada, para os padrões dos EUA, uma publicação de esquerda, revelou que Michael Waltz, conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, o incluiu sem perceber em um grupo “secreto” do Signal, aplicativo de mensagens semelhante ao Whatsapp. Goldberg se deleitou com o acesso aos planos de ataque ao Iêmen, com a infantilização dos participantes do grupo, que tratavam de temas sensíveis por meio de emojis, e com as críticas veladas de subordinados a Trump. Da turma constavam o vice-presidente JD Vance, o secretário de Defesa, Pete Hegseth, o secretário de Estado, Marco Rubio, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, e até um oficial da CIA cuja identidade não foi revelada. Em um relato em primeira pessoa, o jornalista contou que tinha dúvidas de que o grupo fosse real, até ver as imagens dos bombardeios ao Iêmen exatamente nos termos descritos nas mensagens. “Não pude acreditar que a liderança da segurança nacional dos Estados Unidos se comunicasse no Signal sobre planos de guerra iminentes. Também não consegui acreditar que o conselheiro de segurança nacional do presidente seria tão imprudente a ponto de incluir o editor-chefe de The Atlantic em tais discussões com altos funcionários dos EUA, incluindo o vice-presidente.”
No fim, não são os comunistas a ameaçar os decantados “valores da América”
A minúcia do conteúdo publicado e a promessa de que muito mais está por vir caiu como uma bomba no Congresso. Na terça-feira, 25, parlamentares democratas defenderam a renúncia do secretário de defesa e do conselheiro de segurança nacional. Alguns integrantes do Partido Republicano, legenda do presidente, também solicitaram uma investigação, enquanto Trump tentou minimizar o amadorismo dos auxiliares. Em uma entrevista à rede de televisão NBC News, o magnata afirmou que Waltz aprendeu uma lição e era atacado injustamente. “Não acho que ele deva desculpar-se. Acho que ele está fazendo o melhor que pode. É um equipamento e uma tecnologia que não são perfeitos. E, provavelmente, ele não os usará novamente. Ao menos não em um futuro muito próximo.”
O republicano está mais preocupado em enquadrar o Judiciário. O alvo do momento é o juiz James Boasberg, responsável por proibir o uso da Lei de Inimigos Estrangeiros, de 1798, para expulsar imigrantes. Na sua plataforma digital, a Truth Social, Trump clamou pelo impeachment do magistrado. “Este juiz, como muitos dos juízes corruptos aos quais sou convocado a comparecer, deveria ser impichado.” O achaque mexeu com os brios até da Suprema Corte, dominada por trumpistas. John Roberts, presidente do tribunal, veio a público para “doutrinar” o ocupante da Casa Branca. “Está claro, ao longo de mais de dois séculos, que o impeachment (de um magistrado) não é uma resposta para discordâncias sobre uma decisão judicial. O processo normal de revisão de apelação existe para esse propósito”. Na sexta-feira 21, Boasberg manteve-se firme e adiantou a apuração para determinar se autoridades do governo violaram a decisão judicial ao enviarem a El Salvador supostos integrantes da gangue venezuelana El Tren de Aragua.
Repressão. Contra a onda de destruição de modelos da montadora Tesla, Trump ameaça prender os manifestantes – Imagem: Ethan Miller/AFP
Boasberg não está sozinho. Patrícia Millett, juíza de um tribunal de apelações, afirmou que os nazistas tiveram mais direitos para contestar sua remoção do país durante a Segunda Guerra do que os venezuelanos deportados. A Casa Branca se recusa a fornecer informações à Justiça sob o pretexto de “privilégio de segredos de Estado”. Em paralelo, congressistas republicanos anunciaram uma investigação do juiz, nomeado por Barack Obama, e a proposição de uma lei para limitar o despacho de liminares, em um ataque direto às regras básicas do Estado de Direito. O “co-presidente” Musk, por sua vez, aguça as milícias digitais contra a magistratura e gasta dinheiro (que tem de sobra) para eleger nas Cortes nomes alinhados ao novo pensamento dominante na Casa Branca. A exemplo do que havia feito na campanha presidencial do ano passado, o bilionário passou a oferecer 100 dólares a quem fizer petições contra “juízes ativistas que impõem as suas próprias visões”.
Persona non grata. O embaixador da África do Sul foi expulso por tecer comentários críticos à Casa Branca – Imagem: Gianluca Guercia/AFP
Kyle Kopko, professor-adjunto de Ciência Política no Elizabethtown College, analisa a ânsia do governo Trump em minar a independência dos tribunais. Historicamente, diz, o Congresso sempre tem o pior índice de aprovação entre os eleitores. Em seguida vem o Executivo. O Judiciário geralmente é classificado como o mais respeitável dos três poderes. “Atacar juízes e ameaçar escritórios de advocacia faz parte de uma estratégia para ampliar o poder do presidente da República.” Segundo Kopko, há, no entanto, motivos para apostar que as Cortes não irão ceder facilmente à pressão da Casa Branca. “Nos Estados Unidos, os juízes federais têm proteções do artigo 3. A única maneira de serem removidos é por meio do processo de impeachment. Eles também não podem ter seus poderes reduzidos e ocupam um cargo vitalício caso não cometam desvios.”
A proteção aos magistrados não se estende a outros segmentos da sociedade. Nem mesmo as convenções diplomáticas garantem a integridade de quem está em território dos EUA. Que o diga o embaixador Ebrahim Rasool, da África do Sul, expulso por tecer críticas ao governo Trump. Ou Badar Khan Suri, pesquisador da Universidade de Georgetown de ascendência palestina, preso por protestar contra a limpeza étnica promovida por Israel em Gaza. Suri, informou a porta-voz do Departamento de Segurança Interna, Tricia McLaughlin, terá o visto cancelado e será deportado por ter “conexões próximas com um terrorista conhecido ou suspeito, um conselheiro sênior do Hamas”. Junte-se a essas histórias a proibição da entrada de um cientista francês crítico do magnata , a ameaça de prender por 20 anos aqueles que destruírem carros da Tesla, montadora de Musk, como forma de protestos, e o anúncio de que serão barrados no aeroportos todos que fizeram comentários contra o presidente, integrantes do governo e ao país, por meio de palavras ou imagens.
Enfraquecer o Judiciário visa ampliar o poder discricionário da Casa Branca
O mundo tem se perguntado se as instituições norte-americanas irão resistir aos planos de destruição de Trump. Neste contexto, a decisão da Universidade Columbia, fundada em 1754, de ceder ao assédio é um mau sinal. Para ter de volta os 400 milhões de dólares cortados por Washington, a universidade aceitou dar aos seguranças do campus o poder para prender manifestantes, reformular o sistema de admissão e “supervisionar” o Departamento de Estudos do Oriente Médio, Sul da Ásia e África. A capitulação não garante, porém, se e quando o dinheiro público voltará a cair na conta da instituição.
Teocracia? O número de livros retirados de escolas dos EUA é o maior desde o delírio macarthista dos anos 1950. A censura tende a piorar nos próximos anos – Imagem: Redes Sociais
Depois de anunciar o fim do Departamento de Educação, Trump também quer estabelecer um método de censura de livros. De acordo com a Pen America, organização não-governamental dedicada à proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos e no mundo, mais de 16 mil obras foram retiradas das bibliotecas de escolas públicas norte-americanas desde 2021, número que não se via desde o delírio macarthista dos anos 1950. A ordem executiva “Restaurando a liberdade de expressão e acabando com a censura federal”, assinada pelo republicano em 20 de janeiro é uma típica peça da novilíngua fascitoide: impõe o cerceamento em nome de combatê-lo. Lembra o golpe de 1964 no Brasil, quando os militares e as elites impingiram uma ditadura de 21 anos para “defender a democracia”. O despacho permitirá ao governo dos EUA vetar textos que usem, entre outras, as palavras “mulheres”, “feminino”, “minoria”, “historicamente”, “ sub-representado ” ou “socioeconômico ”. Em nota oficial, a Pen America conclama os eleitores a pressionar os congressistas e impedir o “retrocesso”. “Não há ato de censura mais explícito do que literalmente proibir palavras. As ordens terão efeito claro assustador que irá muito além dos corredores do governo.” Neste caso, a decisão de Trump remete a outra obra de ficção, Fahrenheit 451, sobre um governo autoritário de uma sociedade distópica que queimava livros. Ah, e também às ensandecidas hostes nazistas nas ruas da Europa sitiada. •
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O agente laranja’
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