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Nova York entre a polícia e a igualdade racial

Quando o prefeito Bill de Blasio acusou o abuso policial na cidade e adotou o slogan “as vidas dos negros tambéms importam”, os oficiais literalmente lhe deram as costas

De Blasio com o filho, Dante: orientações para não ser parado pela polícia
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O memorando foi enviado pela chefatura a todas as delegacias da cidade no fim da tarde da quarta-feira 7. Por conta do brutal atentado terrorista em Paris, o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) aumentou seu alerta de proteção interna. Policiais foram orientados a usar celulares com parcimônia e, em caso de patrulha, pelo menos um oficial deverá sempre ficar de pé, do lado de fora do carro, quando estacionado.

As medidas foram o segundo ato oficial de defesa dos profissionais de uma das forças policiais mais bem avaliadas do planeta, algo que não acontecia desde os brutais e violentos anos 70. Os oficiais já estavam em estado de alerta desde meados de dezembro, mês marcado pela violência da polícia contra ativistas, o assassinato de dois policiais no Brooklyn e a aparente decisão dos profissionais de diminuir o ritmo de trabalho, com prisões em recorde negativo nas primeiras semanas do ano.

No mesmo dia, o prefeito Bill de Blasio, da ala esquerda do Partido Democrata, crítico ferrenho ao tratamento desigual dado a negros e latinos na “política de ação preventiva” adotada pelos conservadores Rudy Giuliani e Michael Bloomberg, se recusou a se desculpar à corporação por reafirmar seu descontentamento com o abuso de poder policial na cidade.

A maior crise de seu primeiro ano de governo foi ilustrada pela decisão de centenas de policiais de virar as costas para ele em três importantes eventos públicos. A queda de braço entre a polícia e a prefeitura ultrapassaram os limites da maior metrópole americana, incrementando o debate da necessidade de reforma da instituição e da garantia de punição devida aos que ultrapassarem os limites traçados pelos cidadãos.

Cinco dias antes da noite de Natal, o ex-presidiário Ismaaiyl Abdullah Brinsley, 28, matou os policiais Rafael Ramos, 40, e Wenjian Liu, 32, pouco depois de prometer se vingar da morte de Eric Garner, 43 anos. O ambulante, pai de seis filhos, foi aparentemente asfixiado em julho pelo policial Daniel Pantaleo, 29, quando vendia, sem licença expedida, cigarros nas ruas de Staten Island. Pantaleo é branco. Garner, assim como Brinsley, era negro. Seu caso foi registrado em câmera e suas últimas palavras, “não estou conseguindo respirar” se transformaram na senha para uma explosão de ativismo que a cidade não via desde o Ocupe Wall Street.

Dois dias depois de Brinsley atacar Ramos e Liu e se matar em uma estação de metrô, dois outros policiais foram alvejados no Bronx, e o líder da associação da categoria partiu para o ataque: “Há muita gente com as mãos sujas de sangue nestes casos. E a mancha vermelha começa na prefeitura, no gabinete do prefeito”, disse Pat Lynch.

Uma semana antes do assassinato dos oficiais no Brooklyn, os ativistas conseguiram fechar a entrada da Ponte do Brooklyn, do lado de Manhattan, aos gritos de “policiais racistas devem ser exonerados já”. O protesto se deu à frente da sede do Comissariado de Polícia e dois policiais acabaram seriamente feridos. O prefeito os visitou no hospital, mas a imprensa deu muito mais destaque às suas críticas, igualmente públicas, ao uso excessivo de violência pela polícia contra os ativistas e à sua adoção do slogan “sim, as vidas dos negros também importam”, um dos bordões mais fortes dos manifestantes.

De Blasio é casado com uma poeta negra. Em discurso inflamado, pouco depois de se encontrar com a família de Garner, ele afirmou ter conversado com seu filho adolescente, Dante, celebrizado durante a campanha por seu cabelo black power, “e explicado detalhadamente como ele deveria reagir, de forma muito cuidadosa, se abordado nas ruas por um policial, já que as probabilidades de isso acontecer, por ele ser negro e jovem, são grandes”. Indignado, Lynch entendeu que o prefeito oficializara o rótulo de racista dado aos policiais.

O popular comandante da NYPD, Bill Bratton, é, ao contrário de de Blasio, um defensor da série de táticas policiais popularmente batizadas de “janelas quebradas”, em que pequenos delitos são punidos de forma exemplar, e que se tornou sua marca registrada quando comandou a corporação pela primeira vez, nos anos 90, durante a administração Giuliani. Ele é visto com antipatia pelos ativistas, mas considerado pelos democratas uma garantia de equilíbrio na tentativa de reaproximação da polícia com as comunidades mais pobres.

Num editorial do Daily News em que Bratton foi elogiado, o jornal pedia que Blasio se desculpasse publicamente com os policiais como medida inicial para solucionar o impasse. O prefeito disse “preferir olhar para o futuro”.

De Blasio precisa pedir desculpas por quais motivos? Será que a disputa entre prefeito e polícia é mesmo sobre ativistas e a morte dos policiais?”, questiona Charles M. Blow, do Times. “Não, ela é sobre algo muito maior: as filosofias divergentes do que é justo, a aplicação devida do Poder e as estruturas de opressão que demandam submissão dos cidadãos.”

Quem deveria pedir desculpas, segue Blow, é a polícia, capaz de celebrar índices recordes de criminalidade às custas do que a organização de direitos humanos New York Civil Liberties Union (NYCLU) afirma serem mais de 2 milhões de averiguações por ano – em sua imensa maioria negros e latinos e nove entre dez sem provas.

Resta saber se, para De Blasio, a maioria da população, que o elegeu com 72% dos votos, concordará com sua visão de uma cidade ao mesmo tempo menos policiada e mais justa.

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