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No vácuo de poder deixado por Merkel, um social-democrata apresenta-se como a continuidade

Candidato insosso de um partido em crise existencial, Olaf Scholz tornou-se a opção segura

Aposentadoria? Merkel se iguala a Helmut Kohl em longevidade no poder. (FOTO: Kay Nietfeld/AFP)
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A calvície profunda, o sorriso relutante e os modos discretos conferem a Olaf Scholz o sex appeal de um corretor de seguros. O ex-prefeito de Hamburgo, de 63 anos, vice-chanceler e ministro das Finanças de Angela Merkel, também é descrito pelos detratores como um quinta-coluna, conservador infiltrado no SPD, legenda social-democrata dividida entre as origens progressistas e o pragmatismo centrista.

Em qualquer lugar do mundo, um candidato insosso de um partido em crise existencial estaria fora do páreo, mas na Alemanha de eleitores grisalhos submetidos ao desconforto de uma cédula sem o nome de Merkel depois de quatro eleições consecutivas, Scholz tornou-se a opção segura em uma campanha na qual os adversários conseguem ser menos confiáveis e mais enfadonhos.

Nesse clima de convenção anual de vendas, pela primeira vez em quase duas­ décadas amargas, salpicadas por derrotas que puseram em dúvida a relevância do partido e o submeteram à agenda dos históricos adversários da União Democrática Cristã, CDU em alemão, o SPD lidera com estreita, mas consistente vantagem: tem 26% das intenções de voto, contra 20% da legenda da chanceler, em declínio na preferência dos cidadãos, e 15% do Partido Verde, a terceira força do país. Em jogo não só uma dança de cadeiras, mas o futuro de um país acostumado a uma liderança serena, mas sem criatividade e apetite para enfrentar os desafios pós-pandemia e as mudanças climáticas.

A praticamente uma semana da votação, marcada para o domingo 26, a dianteira de Scholz segue inabalada, apesar dos ataques agressivos dos concorrentes e da denúncia de que uma unidade de investigação de crimes financeiros ligada ao ministério comandado pelo vice-chanceler ignorou alertas de um amplo esquema de lavagem de dinheiro no país.

O cerco ao líder do SPD, apontam os levantamentos, não tem sido suficiente para abalar a convicção de quem decidiu o voto. Quanto mais alvejado pelos adversários diretos, Armin Laschet, da CDU, e ­Annalena Baerbock, dos Verdes, mais Scholz consolida a imagem de serenidade e equilíbrio, percepção reforçada no debate do domingo 12, o segundo de três confrontos televisivos entre os candidatos até o fim da campanha. Segundo pesquisa divulgada após o programa, 41% dos espectadores apontaram o social-democrata como vencedor, 27% escolheram Laschet e 25% preferiram o desempenho de Baerbock.

O SPD tem chances reais de voltar ao poder, após se submeter ao programa da direita cristã

Nem a entrada tardia e protocolar de Merkel na campanha foi, até o momento, capaz de virar o jogo. Nascida em Hamburgo, como Scholz, mas criada na porção comunista da Alemanha, a chanceler passou a explorar o medo difuso de um suposto extremismo de esquerda, ao “alertar” para a possibilidade de uma aliança dos social-democratas com o Die Linke, o PSOL germânico, fundado por dissidentes do SPD e que aparece com 6% das intenções de voto. “A Alemanha enfrenta uma escolha de direção”, declarou a primeira-ministra de forma solene, antes de defender o voto no correligionário ­Laschet. “Precisamos de estabilidade, confiabilidade, moderação e centralidade.”

A CDU enfrenta, porém, grandes obstáculos e não será esse tipo de declaração que resolverá o problema. Merkel é maior do que o partido. Desde abril, a legenda direitista despencou nas preferências eleitorais, de cerca de 30% para os 20% atuais, abandonada principalmente por jovens e mulheres. Sem sua líder, os democrata-cristãos são vistos como um aglomerado de homens brancos e velhos resistentes à modernização dos costumes e à agenda ambiental. Não bastasse, Laschet é um peso morto difícil de se carregar, uma figura inexpressiva e sem carisma indicada à ­disputa contra a vontade da base de centro-direita, que preferia o líder da CDU da Bavária, Markus Soder.

Scholz ocupa esse vazio. O vice-chanceler ignora as críticas à direita e não fecha as portas ao Die Linke, embora as divergências com os antigos colegas de partido pareçam intransponíveis: ao contrário da nova esquerda, o SPD é a favor da União Europeia nos moldes atuais, defende a participação na Organização do Tratado do Atlântico Norte e desconfia dos propósitos da Rússia de Vladimir Putin. Segundo seus defensores, Scholz, por conta do perfil conservador para os padrões da centro-esquerda, seria o mais apto a costurar um acordo com o Die Linke, sem abrir mão dos princípios que regeram a política alemã nos últimos 16 anos.

Sem empolgação. Scholz compensa a falta de carisma com a imagem de equilibrado. (FOTO: John MacDougall/AFP)

A enorme fragmentação do eleitorado mantém, no entanto, a disputa em aberto. Às vésperas das eleições, 40% dos alemães afirmam não ter decidido ou se recusam a declarar o voto. Caso as urnas confirmem as pesquisas, o impasse que marcou os mandatos de Merkel continuará a existir: só será possível montar um governo a partir da coalizão de ao menos três partidos.

São vários os arranjos possíveis, a depender dos números finais. Os social-democratas poderiam aliar-se aos Verdes e domar o Die Linke, o que levaria a legenda de Merkel à oposição, ou apenas trocar de posição com a CDU, manter os ecologistas na composição e liderar a aliança eleitoralmente bem-sucedida da última década e meia. Haveria ainda uma chance remota, mas plausível, de o SPD ganhar e não levar. Caso o partido se mostre incapaz de formar um governo, os democrata-cristãos e os verdes teriam a chance de tentar atrair os liberais do FDP, que aparecem com 13% nas sondagens. Seria igualmente uma costura delicada, pois o FDP rejeita o aumento de impostos e a intervenção do Estado, essenciais na transição da economia rumo a um modelo sustentável de produção. Os neonazistas da AfD e seus estimados 11% estão fora de qualquer acerto – outro sinal de que a onda populista de direita, tão ameaçadora no fim da década passada, virou marola, ao menos nos países centrais da Europa.

Sem Merkel, a direitista CDU perde votos entre jovens e mulheres

Acusado de promover a “merkelização” da social-democracia, o que, definem os detratores, significa tirar o cheiro e o sabor do partido, Scholz não se cansa de explorar as semelhanças e esconder as diferenças em relação à chanceler. O esforço para apresentá-lo como a verdadeira continuidade é tão ostensivo que em um dos anúncios do SPD os marqueteiros inventaram a frase “Er kann Kanzlerin” (“Ele pode ser chanceler”, em tradução livre). Kanzlerin é a grafia feminina de kanzler. Os números dão razão ao marketing, mas a promessa de “mais do mesmo” se converterá em um ciclo longo de hegemonia social-democrata? Repetir o governo morno de Merkel atenderá aos anseios dos eleitores no médio prazo?

Merkel, caso desejasse, obteria um quinto mandato e se tornaria a chefe de governo mais longeva da história do pós-Guerra, à frente de Helmut Kohl, a quem se iguala no momento. O estilo sóbrio, o interesse genuíno na busca de consensos e a relativa prosperidade econômica projetaram sua liderança dentro e fora do país e a colocaram em um patamar superior ao de qualquer político alemão em atividade.

A unanimidade, burra como lembrava Nelson Rodrigues, minimiza os erros na política externa decorrentes do receio em causar conflito e da leitura egoísta da realidade. Determinado a defender os interesses dos bancos alemães na crise de 2008, o governo Merkel encurralou a União Europeia na maior crise desde o surgimento do bloco, nos anos 60 do século passado. A opção pela austeridade, em grande medida imposta pela Alemanha, enquanto os Estados Unidos despejavam trilhões de dólares no mercado, empobreceu o continente, inflou os ressentimentos que deram origem à ameaça populista de direita e à desconfiança de que a UE perseguia um único objetivo, garantir o bem-estar alemão à ­custa do sacrifício dos demais parceiros do bloco. A situação estaria pior se os italianos não tivessem liderado a rebelião que impediu a repetição da mesma fórmula de fracasso durante a pandemia de Covid-19. A contragosto, a Alemanha de Merkel acabou obrigada a acatar um bilionário programa de incentivos às empresas, países e cidadãos, garantido pelo Banco Central Europeu, recursos que não só salvaram vidas e empregos, como também impediram a completa e definitiva desintegração do bloco.

Fôlego curto. Os alemães se preocupam com as mudanças climáticas, mas evitam eleger a verde Baerbock. Laschet é peso morto. (FOTO: Ina Fassbender/AFP e Michael Kappeler/AFP)

É esta a armadilha no caminho de Scholz, o “Merkel de calças”. Prometer a continuidade talvez lhe garanta votos, mas não lhe dá um programa de governo à altura da tarefa. O pós-pandemia e as mudanças climáticas, ou, melhor, a urgência ambiental, conforme o mais recente relatório do IPCC, exigem ousadia, coragem e criatividade. Estariam Scholz e o desfigurado PSD preparados? Os alemães estão conscientes da situação, primeiro passo para mudanças profundas. A preservação do meio ambiente tornou-se o item que mais preocupa os eleitores, acima do controle da Covid-19 e da normalização da vida cotidiana. As enchentes do verão, que deixaram mais de 120 mortos, desfizeram a ilusão de que a Alemanha seria um oásis em meio à agonia do planeta.

Publicado na edição nº 1175 de CartaCapital, em 16 de setembro de 2021.

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