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No fio da navalha
Israel viola o acordo de cessar-fogo e o Hamas caça grupos palestinos acusados de colaborar com o inimigo
O cessar-fogo na Faixa de Gaza, efetivado por um acordo subscrito por Donald Trump em 13 de outubro, mal começou e já enfrenta seus primeiros abalos. No domingo 19, Tel-Aviv violou os termos do pacto que interrompeu o genocídio ao bombardear o sul do enclave palestino. Segundo a Agência de Defesa Civil local, a recente ofensiva aérea matou ao menos 42 habitantes da região. A justificativa israelense para o que chamou de “onda massiva e extensa” de ataques aéreos foi atingir combatentes do Hamas que teriam atacado tropas israelenses em Rafah. Mas os eventos daquele domingo foram mais complexos do que sugerem os porta-vozes das Forças de Defesa de Israel.
Primeiro, o jornalista Younis Tirawi revelou que um dos “incidentes” ocorreu durante a continuação das operações de demolição de casas. Desde o sábado 18, ele registrou imagens de escavadeiras trabalhando nos arredores de Rafah. Tirawi informou que dois israelenses – contratados civis a serviço do exército – ficaram feridos ao acionar um explosivo durante o processo.
Um segundo incidente envolveu um suposto ataque do Hamas às Forças de Defesa de Israel na mesma área, próximo à estrada Salah al-Din, que resultou na morte de dois soldados. Segundo Muhammad Shehada, pesquisador do European Council on Foreign Relations em Gaza, Tel-Aviv violou, na ocasião, a chamada “Linha Amarela”, uma fronteira fictícia que limita a presença militar israelense conforme o plano de Trump. A incursão teria como objetivo proteger um dos principais grupos de colaboradores palestinos, as Forças Populares (FP), lideradas por Yasser Abu Shabab. De acordo com Shehada, o Hamas havia infiltrado combatentes no grupo para desmantelá-lo. O ataque ocorreu no domingo 19 e o exército israelense interveio em defesa do FP.
Apesar das repetidas violações de termos do acordo por Israel, o que mais repercutiu na mídia ocidental foram as execuções públicas promovidas pelo Hamas, contra outros grupos palestinos acusados de colaborar com o inimigo durante a ocupação israelense, “sem qualquer julgamento”. Dentro de Gaza, os fuzilamentos divulgados nas redes sociais dividiram opiniões. O jornalista Motasem Dalloul afirmou que os palestinos executados haviam sido recrutados por Tel-Aviv para “roubar ajuda humanitária, monopolizar bens, danificar itens e chantagear pessoas”. Já o líder do “Conselho Tribal para Unidade Nacional” em Gaza, Husni Salman Hussein al-Mughni, declarou apoio “ao avanço contra as milícias apoiadas por Israel”, que considerava vital para restaurar a ordem.
Um dos confrontos mais intensos do Hamas foi com o clã Dughmush, já marcado por tensões com o grupo. O chefe da família, Nizar Dughmush, negou em entrevista à emissora saudita Al-Arabiya qualquer colaboração com Israel: “O Hamas executou jovens sem qualquer processo legal”, disse. Já a britânica SkyNews publicou, no sábado 18, uma reportagem que, cruzando imagens de redes sociais com dados de satélite, expôs milícias palestinas abastecidas pelo exército israelense. Ao menos quatro grupos foram identificados em áreas de Gaza sob controle de Tel-Aviv, entre eles o FP, de Abu Shabab.
Shane Darcy, pesquisador de legislação internacional e autor do livro To Serve the Enemy: Informers, Collaborators and the Laws of Armed Conflict (Para Servir ao Inimigo: Informantes, Colaboradores e as Leis do Conflito Armado), publicado pela editora da Universidade de Oxford, afirmou a CartaCapital que há muitos casos documentados de colaboradores mortos após episódios de genocídio. “A Human Rights Watch relatou execuções de ‘traidores’ pela Frente Patriótica de Ruanda, logo após a interrupção do massacre contra os tutsis. Há também relatos de sobreviventes de campos de concentração e extermínio na Alemanha que se vingaram dos kapos judeus quando foram libertados em 1945.” Ele explica que essas ações não são feitas às escondidas, sem registros nem testemunhas. “São espetáculos públicos, deliberados, que buscam mandar a mensagem de que a traição não será tolerada.”
Tel-Aviv bombardeou o sul do território palestino, após um suposto ataque a soldados israelenses na cidade de Rafah
Yezid Sayigh, pesquisador sênior do Malcolm H. Kerr Carnegie Middle East Center e autor do livro Armed Struggle and the Search for State: The Palestinian National Movement, 1949–1993 (Luta Armada e a Busca pelo Estado: o Movimento Nacional Palestino, 1949–1993), também publicado pela editora da Universidade de Oxford, acredita que o Hamas está respondendo a três realidades. “A necessidade de demonstrar sua sobrevivência e eficácia ao público palestino; o combate a gangues organizadas armadas por Israel, que representarão uma ameaça em caso de desarmamento; e o envio de uma mensagem a clãs que, no passado, foram aliados do Fatah e de suas agências de segurança, e que agora tentariam tirar proveito de sua fraqueza”, afirmou a CartaCapital.
No domingo 19, a Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos, Francesca Albanese, persona non grata em Israel e alvo de sanções pelo governo Trump, criticou “a explosão de violência intrapalestina em Gaza”. Ela disse que “o Hamas e todos os grupos armados (tanto os que resistem quanto os que são apoiados pelo exército de ocupação) devem interromper imediatamente a execução de oponentes”. Omar Rahal, diretor da organização de direitos humanos Shams, também repudiou os fuzilamentos, que, segundo ele, podem “aprofundar as divisões internas e ameaçar a paz pública e a coesão social”.
Essa fragmentação interna tende a se agravar. Além da contínua agressão israelense, pesa contra o campo palestino o plano de Trump, que propõe um sistema de governança em Gaza comandado por estrangeiros, com nomes como Tony Blair em sua composição. O ponto 13 do acordo prevê a destruição de toda a infraestrutura militar do Hamas. Diante desse possível esvaziamento, Sayigh vê poucas perspectivas de um pacto nacional entre Fatah e Hamas que devolva voz aos palestinos. “Considero que o Fatah efetivamente deixou de existir como uma organização política autônoma, capaz de desenvolver estratégias ou tomar iniciativas próprias”, avalia.
Isso fica evidente na pesquisa “Percepções em Tempos de Guerra”, realizada pelo Instituto para o Progresso Social e Econômico (Isep) na Cisjordânia, em maio. Quando questionados sobre em quem votariam numa eleição, 20,5% dos entrevistados citaram candidatos independentes, 15,9% o Hamas e 6,3% o Fatah.
Em Gaza, o Hamas enfrenta um nível semelhante de deslegitimação. Segundo Sayigh, embora o grupo “pareça mais dinâmico”, seu modelo de ação política e militar “também fracassou”. Em levantamento feito pelo Isep em agosto, 25% dos moradores de Gaza declararam preferência por independentes, 4,8% pelo Hamas e 16,1% pelo Fatah. “A arena política palestina está gravemente fragmentada”, observa o historiador. “Não vejo uma nova liderança nem um consenso nacional em torno de uma agenda comum ressurgindo por muitos anos.” •
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No fio da navalha’
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