Mundo
No fio da navalha
Apesar do aparente recuo mútuo, Israel e o Hezbollah estão de novo em rota de colisão


Os pomares do sul do Líbano estiveram tranquilos durante quase 17 anos. Mas, enquanto os agricultores cuidavam das plantações de laranjas e bananas na quinta-feira 6, homens com foguetes espreitavam, preparando o maior ataque contra Israel desde a guerra de 2006 e levando uma região assustada à borda de mais um conflito que os líderes de ambos os lados da fronteira temem que seja pior que todos os anteriores.
As visões conhecidas de riscos a cruzar o céu azul-claro, sirenes e fumaça a brotar dos locais de impacto logo foram substituídas por medo e nervosismo. Em Beirute e Tel-Aviv, uma escalada parecia iminente. Mas, à medida que uma tarde problemática avançava, o confronto apocalíptico entre o Hezbollah e Israel, que havia sido amplamente previsto, começou a amainar. A retórica era de respostas comedidas. Israel contentou-se em culpar os grupos palestinos e colocar distância entre eles e o Hezbollah. A guerra podia esperar, por enquanto.
Mas, enquanto dois inimigos mortais continuam a se perseguir nos campos de batalha do Oriente Médio, em guerras secretas no Líbano, Síria e Iraque, e mais longe quanto o Iêmen, o risco de provocações aparentemente moderadas saírem do controle talvez seja maior que nunca. O pano de fundo do surto da quinta-feira foi uma mistura de questões ainda mais potentes do que de hábito.
As incursões da polícia israelense na mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, durante o mês sagrado muçulmano do Ramadã tiveram má repercussão em toda a região, assim como a ação militar na Cisjordânia, que causou um número excepcionalmente alto de baixas. Um governo israelense de extrema-direita, em dívida com os ultranacionalistas e a enfrentar constante dissidência em casa, deu um ímpeto adicional aos inimigos no Irã e seus representantes no Líbano, para fazer sua presença ser sentida.
Mas talvez a verdadeira razão para um ataque tão pesado de foguetes estivesse na Síria, onde jatos israelenses bombardearam três vezes bases aéreas que estariam abrigando partes de um programa de drones patrocinado pelo Irã, mas dirigido pelo Hezbollah. Na fronteira da Síria com o Iraque, jatos israelenses frequentemente atacavam elementos do que seus líderes militares veem como ameaça ainda maior, a transferência de componentes para converter foguetes em mísseis guiados de precisão que poderiam causar estragos sem precedentes em Israel.
Disparados em grande número, eles poderiam sobrecarregar o sistema de defesa do Domo de Ferro de Israel, que parecia ter um bom desempenho na quinta-feira, interceptando 25 dos 34 foguetes, segundo militares israelenses. Cinco atingiram o solo do outro lado da Galileia, enquanto outros quatro não puderam ser contabilizados. “Temos milhares de surpresas para eles”, disse um integrante do Hezbollah em Beirute. “Eles atingiram algumas áreas na Síria, é verdade. Mas não atingiram todas elas. Estamos confortáveis.”
A organização tinha muito com o que se contentar após o lançamento dos foguetes. A resposta israelense ignorou o Hezbollah e praticamente ignorou as facções palestinas que ela se resumia a culpar. Um míssil disparado por um jato israelense destruiu um pequeno viaduto a cerca de um quilômetro de um acampamento palestino ao sul da cidade libanesa de Tiro. O cheiro perfumado de laranja misturou-se com o aroma do explosivo cordite no local, que foi claramente escolhido para evitar o risco de vítimas.
Mudanças geopolíticas na região insuflam o conflito
“Se isso é tudo o que eles querem fazer, então não devemos atirar de volta”, disse um morador local vestindo uniforme de camuflagem ao entrar na cratera do míssil. “Esta é uma vitória para nós.”
Ao longo da guerra paralela da última década, ambas as partes têm sido extremamente sensíveis sobre como proteger a dissuasão. O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, prometeu retaliar se algum de seus integrantes for morto por Israel em qualquer lugar da região. Mas, à medida que os ataques aéreos israelenses aumentavam, o Hezbollah frequentemente demorava a responder, ou não contra-atacava. “Eles estão enterrando seu povo em silêncio novamente, assim como fizeram durante a guerra na Síria, quando não quiseram defender abertamente aqueles que morriam lutando contra os sunitas como mártires. Nasrallah não pode se dar ao luxo de atingir os israelenses toda vez que eles o atacam, ou o Irã”, disse o integrante do Hezbollah.
Israel também tem sido cauteloso. Seus oficiais militares sabem quem detém o poder no sul do Líbano e percebem que continua inconcebível que grupos palestinos possam lançar tal chuva de foguetes sem, no mínimo, a aprovação tácita do Hezbollah. A organização tem um controle semelhante em áreas do sul do Líbano, e seus participantes estavam visíveis na região na tarde de quinta-feira.
No horizonte, eventos maiores que a capacidade de qualquer um dos lados de administrar continuam, porém, a ganhar força. Uma distensão entre o Irã e a Arábia Saudita, mediada pela China, provavelmente levará a uma trégua declarada no Iêmen e a visitas recíprocas entre chefes de governo em Teerã e Riad. Até o anúncio de surpresa das negociações de paz no mês passado, o líder saudita Mohammed bin Salman era um adepto ferrenho da posição de Israel contra o Hezbollah e via a organização militante xiita como uma ameaça estratégica aos interesses de seu reino.
Embora seja improvável que o príncipe Mohammed tenha moderado suas opiniões, seu envolvimento direto com o Irã, que provavelmente será seguido pelo peso pesado regional, os Emirados Árabes Unidos, anuncia uma nova abordagem surpreendente que tem preocupado Israel. “Há algo nisso para os sauditas que ainda não descobrimos”, disse uma autoridade israelense na Europa. A mudança para reenvolver Bashar al-Assad também surgiu do nada. “Não temos certeza do que está acontecendo.”
Nesse ínterim, os cidadãos libaneses e israelenses respiraram, mas suas terras provavelmente serão um campo de batalha substituto sobre o qual se travará uma guerra destrutiva em algum momento no futuro. “Por enquanto, vamos seguir com nossas vidas”, disse Haitham Rashid, um sunita libanês que desfrutava de uma refeição para comemorar o fim do jejum do Ramadã, em Beirute, na quinta-feira. “A história já está escrita para nós. Aceitaremos nosso destino quando ele vier.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Donald “Capone” ‘
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