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No Egito, a ditadura busca legitimidade

Referendo constitucional é a ferramenta escolhida pelo comandante do Exército para reforçar o poder do novo regime. Por José Antonio Lima

Soldado egípcio monta guarda em frente a uma escola no Cairo que será usada como local de votação para o referendo
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Nos próximos dois dias, os egípcios vão às urnas pela primeira vez desde o golpe contra Mohamed Morsi, em 3 de julho passado. Em referendo, os eleitores devem dizer sim ou não à nova Constituição do Egito, elaborada por um grupo de 50 pessoas nomeadas pelo atual regime. O retorno de um procedimento importante para uma democracia, a votação popular, não deve ser confundido com a democratização do Egito. Ao contrário, o voto de terça-feira 14 e quarta-feira 15 não passa de uma ferramenta do governo interino, comandado pelo general Abdul Fatah Khalil Al-Sissi, para legitimar seu poder no país.

Em termos técnicos, o referendo poderia ganhar o rótulo de democrático. A nova Constituição não difere tanto da aprovada sob a Irmandade Muçulmana e, como ela, tem inúmeros problemas, como os julgamentos militares de civis e a liberdade de religião circunscrita apenas ao cristianismo, ao judaísmo e ao islã, mas tem avanços importantes. Entre eles estão a garantia de igualdade de gênero, proteções para crianças, idosos e deficientes, o banimento da tortura e o veto a leis contrárias aos direitos individuais. Esses mecanismos não serão efetivados apenas por uma lei, pois precisam ser colocados em prática pela sociedade e pelo Estado egípcios, mas o fato de estarem escritos em algum lugar é bastante significativo.

Na prática, entretanto, o referendo não pode ser considerado democrático, pois o Egito se tornou uma ditadura novamente.

A vítima preferencial do regime Sissi continua a ser a Irmandade Muçulmana. O grupo assumiu o poder em 2012, após as primeiras eleições livres da história do Egito, mas caiu em desgraça por conta de um governo incompetente e autoritário. Derrubado em julho, o grupo passou a ser perseguido de forma implacável. A imprensa ligada aos irmãos muçulmanos foi suprimida; seus principais líderes foram presos e exibidos como troféus; e centenas de militantes foram mortos em confrontos com a polícia e o Exército. A repressão é também econômica. Pelo menos 800 pessoas ligadas à Irmandade Muçulmana tiveram bens congelados nos últimos meses, assim como as entidades vinculadas a diversas versões diferentes do islã político, a ideologia dos irmãos muçulmanos.

A tentativa de sufocar o islã político é uma estratégia não apenas fracassada como perigosa. Por três razões. A Irmandade já foi reprimida de forma parecida em outros períodos, se enfraqueceu, mas nunca deixou de existir. Nada indica que o atual regime conseguirá matar a ideologia matando seus seguidores. Em segundo lugar, ao bloquear as finanças das entidades islâmicas, o governo aumenta o suplício de milhões de egípcios que dependem de clínicas, hospitais, escolas e outras instituições mantidas pela Irmandade Muçulmana e grupos religiosos. Não há qualquer plano do governo para criar algo minimamente semelhante a um estado de bem-estar social capaz de substituir o trabalho de base dessas instituições. Em terceiro lugar, ao criminalizar a Irmandade, classificada como “grupo terrorista” em 25 de dezembro, o governo fortalece os seguidores mais radicais do islã político – os que enxergam a luta armada como única forma de fazer avançar seu projeto.

Por anos, irmãos muçulmanos e adeptos do jihadismo estiveram em lados opostos no debate interno do islã político, mas agora estão se aproximando. Por conta deste novo fenômeno, os analistas Daniel Byman e Tamara Cofman Wittes escreveram no jornal The Washington Post, na semana passada, que a designação da Irmandade como grupo terrorista pode muito bem se tornar uma profecia autorrealizável.

Perseguição aos jovens da Praça Tahrir

A brutalidade da repressão contra a Irmandade Muçulmana fez diversos ativistas seculares perceberem que o golpe de julho, apoiado por muitos deles, não era o reinício da revolução de 2011, mas seu fim. Ao retornar às ruas, não tardaram para voltar à cadeia e aos tribunais.

Em 22 de dezembro, Ahmed Douma (ativista político e blogueiro), Ahmed Maher e Mohamed Adel (fundadores do movimento pró-democracia 6 de abril) foram condenados a três anos de prisão e multa equivalente a 16 mil reais por violarem uma draconiana lei aprovada após o golpe que proíbe reuniões públicas de mais de dez pessoas sem autorização prévia. Em janeiro, Alaa Abd el-Fatah (ativista político e blogueiro), Mona Seif (fundadora do “Não aos Julgamentos Militares”) e Ahmed Abdallah (do 6 de Abril) foram presos sob acusação de liderar um ataque contra um escritório de campanha de Ahmed Shafiq, ex-militar que disputou a presidência com Morsi em 2012. Os seis ativistas foram vozes ativas no início da Primavera Árabe e hoje se opõem ao regime militar instalado. Todos estão sendo presos e/ou condenados em processos arbitrários e baseados em provas frágeis.

Whael Ghonim, criador da comunidade do Facebook Somos Todos Khaled Said, por meio da qual foram organizados os primeiros protestos contra Hosni Mubarak em 2011, também virou alvo. O canal de tevê Al-Kahera Wal Nas divulgou grampos de telefonemas de Ghonim e o acusou de ser um “traidor”, que planejou a revolução de 2011 “com estrangeiros”. Em outubro, o canal CBC cancelou o programa do comediante Bassem Youssef, perseguido também por Morsi, após este ironizar o comando militar do Egito. O fato de emissoras privadas agirem a favor do governo é sintomático da adesão em massa ao regime por parte da imprensa, particular e estatal. Nas últimas semanas, a mídia pró-regime, engajada também na campanha contra a Irmandade Muçulmana, “denunciou” como “colaboradores” do grupo um fantoche usado pela Vodafone em um comercial e também a atriz norte-americana Angelina Jolie.

As acusações canhestras não entram apenas o folclore do Egito. Cinco jornalistas do canal Al-Jazeera, dois da versão árabe e três da inglesa, estão presos acusados de “espalhar mentiras” e “integrar organização terrorista”.

Sim ou sim

A importância do referendo como forma de legitimar o golpe e o poder do general Sissi pode ser medida pela intensidade da campanha a favor da aprovação da nova Constituição. De acordo com o jornal The New York Times, estrelas de cinema egípcias se juntaram para gravar um vídeo pedindo voto no “sim”. E até o Exército divulgou um vídeo, estrelado por crianças, no qual pedem aos eleitores para não deixar o país “na destruição” e lembram o “julgamento de Deus”. Enquanto a campanha pelo “sim” é estimulada, a do “não” é hostilizada. Propagandas pedindo voto contra a nova Carta foram confiscadas pelo Ministério do Interior e três integrantes do partido Egito Forte foram presos na semana passada ao tentarem divulgar cartazes a favor do “não” no centro do Cairo, a capital egípcia, repleta de pôsteres favoráveis ao “sim”.

Para Sissi, a votação será um termômetro sobre a sua popularidade. A Constituição elaborada sob o governo da Irmandade Muçulmana foi aprovada por 64% dos eleitores, em uma votação na qual o comparecimento foi de cerca de 35%. Se esses números forem superados, Sissi deve se considerar aclamado pela população a cumprir o sonho que, segundo ele próprio, alimentou no passado recente. Até o último fim de semana, o general mantinha um certo mistério a respeito de sua candidatura para a presidência. Em discurso no sábado 11, a situação ficou mais clara. Sissi afirmou a uma audiência militar que iria se candidatar “se a população fizesse um pedido”. O comentário foi entendido como um recado.

É bastante provável que o general consiga, no referendo, um “mandato popular”. Três anos depois da Primavera Árabe, o Egito nada avançou e, em alguns aspectos, regrediu. A violência política se tornou comum, atentados têm ocorrido nos últimos meses e o clamor por um líder forte capaz de trazer calma e colocar o país nos trilhos é cada vez mais evidente. Tratado como herói e “nova estrela do vale do Nilo” pela imprensa, Sissi tem sua imagem cultuada e a entrelaçou com a do próprio Exército, que permanece em alta apesar dos privilégios desfrutados e abusos cometidos. Nas ruas das maiores cidades do país é possível achar todo o tipo de bugiganga com o rosto e as iniciais de Sissi. Na missa oficial do Natal dos cristãos coptas, realizada em 7 de janeiro, Sissi foi aplaudido por 34 segundos. Ele nem mesmo estava presente na igreja.

Ninguém está tão bem posicionado para se tornar o novo “faraó” do Egito como Sissi, mas ainda que não decida encerrar sua carreira militar para apostar na carreira civil, como fizeram os três ditadores do Egito (Gamal Abdel Nasser, Anwar al-Sadat e Mubarak), o general continuará dando as cartas no Egito. A Constituição a ser referendada nesta semana prevê que as Forças Armadas, e não o presidente, designem o ministro da Defesa pelos próximos oito anos. Quem é o atual ministro da Defesa? O próprio Sissi.

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